Caso 31 - Moedas

 O vilarejo no qual cresci e vivi por 14 anos era realmente pequeno. Havia somente uma farmácia. Isso nos idos da década de 70, por volta de 1977. A farmácia era propriedade de um senhor calvo e bondoso, com um enorme bigode. Ela se limitava a uma sala em frente a sua casa. Tinha um balcão de vidro e uma enorme prateleira cheia de potes de produtos químicos. Ao fundo havia uma salinha menor para atendimentos mais detalhados, como vacinas, por exemplo. Ela era parte de uma casa bem maior, cuja entrada se dava pela área ao lado direito. Do lado esquerdo havia um quintal com árvores frutíferas exóticas, como romãs, pêssegos e nectarinas, assim como uma pequena garagem coberta. Ao fundo da grande casa havia ainda um enorme quintal que se distendia por cerca de cinquenta ou mais metros rumo a um riacho. Não havia casas ao redor. Esse enorme terreno era o primeiro da rua e a casa era antiga, da época em que o vilarejo fora fundado. Ficava perto de uma pequena ponte por onde passara outrora uma linha ferroviária, extinta e removida na época em que ali vivi, ficando em seu lugar uma estradinha poeirenta. No lado oposto à estradinha, depois da farmácia, havia um pasto com vacas pastando mansamente. Às vezes nós, meninos, íamos pegar nectarinas no muro junto ao pasto e nessas horas as vacas não pareciam assim tão amistosas, mas em geral eram.

O bom e velho farmacêutico era já idoso. Seus filhos, todos adultos, já demandavam dele uma aposentadoria justa. Certo dia eles venderam a farmácia a um farmacêutico da capital do Estado e mudaram-se do vilarejo. Logo depois o bom e velho farmacêutico morreu e ficaram as boas lembranças de seu trabalho e carinho para com os moradores do vilarejo. Já o novo farmacêutico, também calvo e sempre meio ofegante, era no entanto mais jovem e tinha dois filhos cujas idades eram próximas à nossa, minha e de meus irmãos. Nessa época eu estava no meu primeiro ano escolar e tinha uns sete anos. O filho mais velho tinha uns 11 anos e o mais novo tinha uns 9 anos. O mais velho já estudava no turno da tarde, então não tinha muito contato conosco, mas o mais novo virou um grande amigo de todas as turmas da manhã. Com seu sotaque diferente, típico da capital, era agitado e inteligente, ao mesmo tempo que inocente e mimado. Essa família ainda era diferente porque não havia uma mãe na casa. O pai, divorciado, tinha uma namorada que vinha da capital para o vilarejo aos fins de semana, mas não era de fato uma mãe. E apesar de terem se mudado para o vilarejo no meio do ano, os meninos foram para as suas turmas já em aulas, mas se adaptaram bem e não tiveram problemas escolares.

Dois ou três anos depois, com os meninos já enturmados com todos, houve uma festa de aniversário do mais novo. Eles não eram ricos. Eram, no entanto, de uma classe média que definitivamente era mais acostumada com alguns luxos que nós, pobres do interior, não vivenciávamos sempre. Festas de aniversário eram comuns, mas aquela foi bem mais elaborada que o normal. Bolo grande, copinhos descartáveis, parecia mais um casamento em termos de logística e comilanças. E foram muitas crianças convidadas. Mais que o normal da vizinhança. E para mim foi memorável.

Mas, durante a festa, que se deu em um sábado à noite, algo interessante aconteceu.

Na medida em que as horas foram passando, a molecada resolveu brincar no quintal. A casa estava cheia e era grande, mas não o suficiente para toda a turma, que era já entrosada na escola. Acabamos indo para o quintal, cujo terreno descia em curva rumo ao riacho ao fundo. Junto à margem do riacho, um enorme e secular bambuzal se erguia, cobrindo quase todo o quintal com um manto de folhas secas e macias. Como os meninos moradores da casa não brincavam no lugar, o chão nunca era limpo, porque seria inútil. Algumas horas depois de limpo ele já estaria novamente cheio de folhas. E assim, cheio de folhas, o encontramos naquela noite de sábado.

Era um local escuro, porque afinal não havia casas nem ruas iluminadas ao redor, e o enorme bambuzal encobria tudo. Na medida em que a brincadeira foi aumentando e envolvendo mais crianças, mais para o fundo do terreno íamos nos aprofundando. E em um momento em que tive de me esconder, deitei-me bem no fundo do terreno, no escuro, sob a curva do terreno, difícil de ser visto por alguém na parte de cima do terreno. No escuro, era preciso ter coragem e cuidado para se ir até o fundo. E havia ainda a cobertura de folhas. Obviamente que usei folhas e mais folhas para me esconder, tornando a busca ainda mais difícil. 

E foi nesse processo de pegar folhas secas no chão para me esconder que notei algo interessante no chão nu abaixo das folhas que acabara de retirar. Ainda que no escuro, algo metálico brilhara, chamando a minha atenção. Era uma minúscula moeda.

Crianças e adultos gostam de dinheiro. E achar dinheiro no chão, seja uma nota ou uma moeda, sempre é muito excitante, ao menos para mim e para a maioria das pessoas que conheço.

Senti essa sensação quando vi a moedinha. Eu a achara. Ela era minha. Claro, ela estava no quintal de um amigo e eu pensei que alguém da casa poderia tê-la perdido, então não fiquei simplesmente quieto e a guardei no bolso. Eu fui até o meu amigo aniversariante e perguntei se ele tinha perdido alguma moeda. Ele disse que não, obviamente. Ele ficou curioso e fomos até o lugar em que eu a achara. Obviamente também que não era fácil saber o lugar exato na qual eu a achara, mas mesmo assim tentamos achar o lugar. 

Apenas um detalhe inocente foi ignorado por mim naquela descoberta: a moedinha não tinha valor algum conhecido. Era uma moeda fora de circulação, mas isso não tirou o brilho real e emocional da descoberta. Uma moeda era uma moeda, e procuramos o lugar onde ela estivera até a pouco. 

E, surpresa, logo alguém achou outra moeda. E outro achou mais outra moeda. E de repente um bando de meninos, no escuro, se debruçaram no chão entremeio a folhas secas procurando, e achando, moedinhas sem valor umas próximas às outras, e elas pareciam não ter fim. Para mim era como se elas brotassem do solo. E, na euforia da busca, chegamos ao foco principal delas. Uma quantidade tão grande que não éramos capazes de pegar todas. Elas cobriam uma área de vários metros quadrados de chão. Montes delas. E eram tantas que chegamos à conclusão de que se ficássemos perdendo nosso tempo pegando essas moedinhas não aproveitaríamos o resto de tempo da festa e já era meio tarde para ficar ali, revirando folhas secas no chão no meio da noite escura. Como elas eram muitas, mas não valiam nada, acabamos as deixando de lado e voltamos para o final da festa e depois fomos, cada um de nós, para nossas casas.

As moedas foram esquecidas e, passados mais de quarenta anos do ocorrido, creio que ninguém que vivenciou aquele dia se recorda dessas moedinhas misteriosas. Não me lembro de alguém que tenha estado junto de mim naquele dia, mas dificilmente alguém se lembraria disso. No entanto, tenho a firme convicção de que elas ainda possam estar lá, no mesmo lugar, depois de tanto tempo.

Suponho que sim porque alguns anos depois o farmacêutico pai dos meninos acabou comprando um terreno em um local mais adequado do vilarejo e construiu uma casa nova com uma farmácia mais moderna e aquela casa antiga acabou ficando abandonada.

Hoje ela está em ruínas. Muros derrubados, telhados colapsados, portas arrombadas e muito mato nos arredores, com trouxas de trapos de andarilhos que pernoitam por lá ou a ocupam temporariamente esparramados pelos cômodos de assoalhos imundos e madeiramento podre é o que vemos de longe. Nunca mais me aproximei muito dela. Apenas passei de carro uma ou duas vezes em frente, porque a velha casa fica na entrada do vilarejo e é difícil não notar a sua situação lastimável. O enorme bambuzal continua no fundo e tenho quase certeza de que suas folhas ainda escondem muitas moedinhas. Às vezes fico com a sensação de que preciso, preciso mesmo, voltar lá e achar mais moedas, mas agora sou um adulto e isso é muito improvável de ocorrer.

É fácil hoje dar uma explicação para aquelas moedas todas. 

Muito provavelmente o antigo farmacêutico juntara moedas ao longo das décadas de comércio e após morto seus filhos resolveram dar destino às coisas deixadas pelo pai falecido. Certamente acharam algum pote grande ou mesmo algum bauzinho cheio de moedinhas esquecidas. Como o país passara por mudanças monetárias ao longo das décadas passadas, as moedinhas deixaram de ter valor. A inflação acumulada por décadas não se compararia à que viria depois, nas décadas de 80 e 90, que também reduziria moedinhas a nada, mas ainda assim fora suficiente para provocar a inutilização de pequenas fortunas juntadas ao longo dos anos por pessoas previdentes, mas não tanto, a ponto de deixarem suas pequenas reservas guardadas sem serem trocadas por moedas novas e válidas, como sempre ocorre quando um sistema monetário em ruínas é substituído por outro, mais promissor e com menos zeros a serem contabilizados.

Mas, observo, não deixa de ser um fato a se considerar que um dia essas moedas tiveram valor e por isso foram guardadas. Elas foram de fato um pequeno tesouro para alguém que as guardou para algum consumo futuro, um uso que não fazemos ideia de qual poderia ter sido pensado ou sonhado pelo seu possuidor, mas que acabaram virando metal a ser corroído e engolido pela terra úmida ao longo das décadas, e porque não, ao longo dos séculos e milênios que ainda virão. Não é razoável pensar que alguém um dia irá resgatar cada uma dessas moedas. Elas serão reincorporadas ao substrato do solo mais cedo ou mais tarde, a depender do tipo de metal que a constituem.

Quantos outros tesouros ainda estão escondidos sob as folhas das árvores e de bambuzais? Quantos outros se escondem em lugares ainda mais recônditos, no solo, em arcas enterradas, em túneis secretos, em batentes de portas, em covas secretas e anônimas?

Sei que a soma monetária daquelas moedas todas é zero ou próxima de zero. Talvez haja algum valor histórico, mas pouco. Há para mim um valor emocional e pessoal na descoberta delas, no entanto, que precisa ser entendido. Noto que foi um caso único em minha vida. Claro que qualquer evento onde haja abundância e preços módicos para algo que nos é valioso também provoca aquela sensação de excitação, quando ocorre, por exemplo, uma promoção de algum produto que amamos e é realmente uma promoção ou mesmo um brinde, ou um achado. Claro que já tive a sorte de, por exemplo, achar livros, CDs, objetos diversos jogados em cestos de lixo pelas ruas da cidade que moro, e é uma experiência boa. Quem, por exemplo, não se sentiria feliz de encontrar um exemplar perfeito e intacto, grátis, de um livro sobre um tema amado, em uma sacola de lixo ou mesmo no chão, à disposição, bastando que nos abaixemos e o tomemos como nosso? Isso ocorre, vez por outra, em grandes cidades, e quanto mais rica a região ou rua, mais ocorre. E se for um local com muitos idosos, é mais comum ainda. Pessoas vivem juntando coisas como se fossem eternas, mas não são. Um dia morrem e é preciso que haja espaço para objetos novos de pessoas novas. Coisas anteriormente amadas são então descartadas como lixo. Alguém mais cuidadoso às vezes faz doações, mas o lixo é o destino das coisas mais comuns e menos volumosas.

Mas não é somente do mundo moderno que falo. Afinal, a humanidade está na Terra a milhares de anos. E, se somos os mesmos, temos os mesmos impulsos de colecionar, juntar, nos precaver contra momentos de carestia, se amamos objetos e coisas, é certo que os muitos bilhões de humanos que viveram antes de nós tiveram o trabalho de juntar coisas que julgavam valiosas a seu tempo, e a guardá-las em lugares diversos. Algumas coisas eram mais valiosas que outras. Algumas, mais duradouras que outras. A maioria já se desintegrou pelo tempo. Algumas, no entanto, podem ainda estar escondidas. E houve povos que se esmeraram nesse processo. Os egípcios são um exemplo, mas certamente não o único, porque coisas são encontradas em lugares os mais remotos imagináveis. 

São cápsulas do tempo à espera de serem encontradas, mas onde e como encontrá-las?

A história às vezes nos assombra com lendas de tesouros escondidos por piratas, ou construções milenares cobertas por mato e terra, ou ainda soterradas sob as areias dos desertos. Não há necessariamente moedas nesses lugares, mas a sensação de se estar descobrindo um tesouro é a mesma que senti quando criança. E há a literatura e o cinema, a ficção dos caçadores de arcas perdidas, de caçadores de múmias, de aventureiros, piratas de ilhas caribenhas e mesmo, por que não, caçadores de civilizações perdidas, Atlântidas platônicas, povos citados, mas não encontrados, gigantes bíblicos, templos citados, mas já ruídos, Tróias narradas, mas soterradas e tecnologias garatujadas em paredes de pedras, mas nunca removidas de escombros e lama. O passado nos legou um universo de coisas que podem parecer fascinantes, e de fato são, mas que não precisam ser encontradas de fato para gerar a fascinação. A mera possibilidade de existência e a mera possibilidade de busca já nos excita. Tesouros de nazistas, de imperadores e impérios arruinados, locais de batalhas, restos de batalhas, castelos, fortificações, estradas abandonadas, pedras amontoadas, tocas rabiscadas, ossadas enterradas, fósseis,  tudo é fascinante.

Não sei se voltarei a procurar as moedinhas no fundo da farmácia, mas sei que não sou o único humano fascinado pelo passado e seus segredos.

Não sei se os deuses eram astronautas, mas sei que seria fascinante saber mais sobre os deuses e homens do passado

Se você leu e tem alguma história para contar, sinta-se a vontade para postá-la aqui ou discuti-la conosco.

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