Caso 57 - Outra facada

 Caso 57 - Outra facada


Há crimes que acontecem sem uma explicação. As pessoas morrem de diferentes maneiras, mas morrer em decorrência de um crime, ser morto intencionalmente por outro ser humano é uma das coisas mais injustas que existem, embora seja coisa muito comum. E em decorrência de sua injustiça, crimes de assassinato são investigados e seus autores são severamente punidos pela sociedade de todas as formas possíveis. Mas nem sempre sabemos o porquê de cada caso em particular. Crimes ocorrem, mas são quase sempre surpreendentes em suas motivações.

O presente caso é um desses em que o mistério da motivação me deixou assustado.

Eu era um menino ainda quando o fato se deu. Tinha por volta de uns dez anos de idade e morava em um vilarejo. Meu pai na época tinha sempre algum tipo de carro barato, um Fusca ou um Corcel velho, e quase nunca estava em casa à noite. Mas ele sempre estava pelas redondezas, em geral em algum boteco na cidade vizinha, maior e com mais opções de atividades que no vilarejo onde morávamos. E quando meu pai gostava de um determinado boteco, ele o frequentava regularmente, até que por algum motivo qualquer se cansasse do lugar e passasse a frequentar outro. Assim, ele sempre estava na área, e não era difícil ele contar, ao chegar em casa, quase sempre as mesmas histórias, narrando sobre o que houve ao longo do dia, com quem conversou, as notícias que ficou sabendo, o boteco onde passou o final da noite, etc.

Em uma certa noite ele retornou da rua e nos contou que ficou sabendo de algo que ocorreu em um boteco que frequentava regularmente, mas que por algum motivo trivial ele teve a sorte de não presenciar. O evento ocorreu justamente em uma dessas noites em que ele por acaso não foi ao boteco, embora pudesse ter acontecido em sua presença, porque ocorreu em um dia qualquer e ele percebeu que foi apenas por sorte que não tivesse ocorrido em sua presença.

Naquela época, início dos anos 80, a pequena cidade estava em expansão. Não cresceu muito, mas ainda assim estava recebendo moradores de outros estados do país devido às crises que ocorriam na época, como a econômica, com muita inflação, e a seca no Nordeste, que obrigava muita gente de lá a procurar lugares melhores. A cidadezinha não tinha nada de interessante, mas acabou sendo um ponto de parada de muitos nordestinos e mineiros que vinham e se estabeleciam por algum tempo para trabalhar nas lavouras de cana e laranja que havia e ainda há na região. Ainda hoje isso ocorre, mas não na intensidade da época.

Eram moradores sem estudo, sem educação, e geralmente homens jovens e solteiros. Na época não havia o problema das drogas ilícitas, mas ainda assim havia o problema das bebidas alcoólicas, das mulheres da vida e da falta de educação em geral. Então, era comum que houvesse muitas brigas em bares e festas. Os motivos geralmente eram fúteis, mas nem sempre as coisas acabavam bem. Como esse pessoal novo na cidade só podia pagar alugueis de casas modestas, eles geralmente moravam nos bairros mais pobres e afastados. Nesses bairros sempre se podia contar com a possibilidade de ganhar algum dinheiro abrindo-se um bar ou mercearia para atender a esse público mais pobre. Havia a rotina de trabalho deles, de acordar cedo para ir para a roça e voltar cansado do trabalho braçal para depois jantar, tomar alguma bebida no bar próximo de casa e depois ir dormir para acordar no dia seguinte e seguir na mesma toada. Essa rotina gerava um forte incentivo para se ganhar algum dinheiro montando algo próximo das casas onde eles moravam. Foi em um desses botecos simples que o evento aconteceu.

Meu pai não testemunhou o caso, mas ele, o evento, foi-lhe contado com tantos detalhes que não havia como não ser possível visualizar a cena como se tivéssemos sido testemunhas dela. Meu pai ficou sabendo da boca do dono e dos demais frequentadores do lugar, todos conhecidos dele.

A coisa foi rápida. 

Algumas pessoas estavam sentadas em algumas mesas bebendo e conversando. Meu pai tinha o costume de se sentar em uma mesa específica. Era um lugar pequeno. Havia pouco espaço para mesas. Meu pai geralmente se sentava em uma das duas ou três mesas que ficavam na calçada. Embora meu pai conhecesse muita gente no local, não conhecia todo mundo que frequentava o bar porque muita gente era nova no bairro e assim, ele se sentava somente com conhecidos. E sabia que os desconhecidos eram recém-chegados na cidade porque isso era uma coisa comum naquela época.

Em frente ao bar, no outro lado da rua, meio escura, ladeada de casinhas simples, havia um ônibus de transporte rural, usado por turmeiros para levar e trazer os trabalhadores da roça. Neste dia, os conhecidos amigos de meu pai disseram que por volta das nove horas da noite um homem surgiu muito silenciosamente por detrás do ônibus, caminhou até uma das mesas onde havia dois ou três homens jovens conversando, desses que eram novos na cidade. Em seguida, esfaqueou um deles mortalmente e saiu em disparada na escuridão. 

Não houve tempo de se fazer nada. Ninguém sabia quem era o assassino. Ele viera com a faca na mão, escondida atrás do punho. Ele sabia exatamente quem era o seu alvo. Não houve agressão, discussão nem reação dos demais que estavam na mesa com a vítima. O esfaqueado não teve tempo de saber quem o atingiu. A morte por facada é relativamente rápida quando o corte gera uma hemorragia grande. Em poucos minutos o esfaqueado estava morto.

Como sempre, aquilo era um problema para todos os presentes, e com exceção do dono do bar, que não tinha como fugir, todos os demais presentes se esquivaram de qualquer comentário quando a polícia chegou, chamada por algum dos presentes. A vítima não era muito conhecida. Ninguém sabia nada sobre sua vida. Seu cadáver foi recolhido e o bar foi fechado naquela noite um pouco mais cedo. Certamente nunca saberiam quem era o assassino. Foi, para os presentes, uma cena dolorosa e desagradável, porque não era comum assassinatos naquela cidadezinha pacata. E fora tudo tão rápido e silencioso. A falta de motivo era também de se assustar. Talvez somente o assassino e a vítima soubessem a razão daquela facada, mas o segredo morreu com a vítima, que sequer soube quem o atacou.

Brigas com facadas não eram coisas incomuns. As pessoas brigavam por motivos fúteis, e naquela época era muito difícil que alguém comprasse uma arma de fogo, um revólver, por exemplo. Então, os casos mais graves acabavam sendo resolvidos na facada. Mas sempre se sabia a razão de uma facada.

Mas não naquele caso.

Se houve algum atrito entre vítima e assassino, não se sabia quando e nem porquê. De toda forma, dado que não fora naquele dia, então o assassino ficara aguardando o momento ideal para consumar o crime. Mas com que frieza o fez! É difícil imaginar que alguém pudesse manter a decisão de matar alguém com frieza somente porque houve uma briga por algum motivo trivial. A simples trivialidade dos motivos levam as pessoas a repensarem suas decisões tomadas ou premeditadas no calor da raiva e da discussão, mas depois de algumas horas, ou de dias, ou mesmo semanas, pode-se se sentir algum desagrado contra a pessoa com quem se brigou, mas desejar matá-la demanda uma razão muito forte. Do contrário, somente uma pessoa muito maldosa e mentalmente perturbada se disporia a seguir adiante com um plano de assassinato em decorrência de algo banal.

Daí que hoje em dia as redes sociais precisam criar narrativas que levam as pessoas a pensar duas, três, infinitas vezes em se envolver em qualquer tipo de discussão em ambientes sociais os mais variados, como no trânsito, nas ruas, em qualquer lugar onde se possa haver atrito humano por trivialidades, porque nunca se sabe quem está envolvido nessas situações de atrito. Alguém pode estar em um mau dia e pode perder a cabeça. Pode estar armado ou pode estar desarmado. Uma pessoa mesmo desarmada pode ferir ou matar outra se perder a cabeça na hora errada. Agora, passado o momento crítico do atrito, quem pode imaginar que poderá ser morto por alguma besteira que não deveria dar em nada?

A lógica é mais profunda. Dado que mesmo um atrito leve com um psicopata pode levar à morte em momento posterior, a única coisa a se fazer é jamais se envolver em nenhum tipo de atrito.

Somente quem vive em grandes aglomerações humanas sabe o quão difícil é se esquivar dessas situações de conflito humano potencial. É preciso sangue frio e muita calma para não se envolver em problemas em quase todos os lugares.

Mas em lugares mais tranquilos? E se o psicopata for uma pessoa conhecida? E se for somente um amigo com o qual temos a liberdade de brincar e, sem querer, ofendê-lo a ponto de sermos mortos depois pelas costas, na calada da noite, sem chance de defesa e de socorro?

O problema então é mais profundo.

Não só não se pode ter atrito, mas dependendo do caso, nem contato com esse tipo de pessoa. Mas como saber quem é e quem não é capaz de nos matar pelas costas por um motivo trivial do qual jamais se suporá qual seja a razão?

A busca por traços de psicopatia tem sido um trabalho longo e quase sempre infrutífero. Assassinos potenciais deveriam ser caçados antes de cometerem seus crimes com base em seus traços psicológicos. Mas como saber quem são?

Esse é um tema longo e complexo e falaremos mais dele no futuro, neste blog.

Você, caro leitor, conhece algum caso parecido de morte sem anúncio?

Conte-nos. Se não, fale-nos sobre o que pensa sobre psicopatas silenciosos.

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