Caso 51 - O formigueiro

 Caso 51 - O formigueiro


Os supostos milagres são fenômenos que tendem a ocorrer sem a influência da vontade humana, isto é, se a vontade humana tivesse alguma forma de controle sobre os milagres, eles ocorreriam a todo momento e, portanto, não seriam milagres. É exatamente a falta total ou quase total de poder que a vontade humana tem sobre eles que o tornam fenômenos raros e tão apreciados.

Isto não quer dizer que as pessoas, mesmo sem ter o poder de realizá-los, não possam tentar induzi-los por qualquer forma que seja.

A forma mais simples de se tentar induzir um milagre seria simplesmente pedindo a Deus ou a algum ser superior que o realize. Mas, por ser tão fácil e simples de se pedir, raramente se pode associar algum milagre a algum pedido em especial. Não que isso não ocorra. É que diante de tantos pedidos, muitíssimo poucos podem ser associados a milagres. Ainda assim, é o meio mais conhecido e eficaz de se induzir um milagre.

Mas nem sempre o simples pedir resolve. 

Assim, outros meios, supostamente mais poderosos, são tentados. Alguns possuem alguma lógica. Outros, nem tanto.

As orações são formas de se pedir mais elaboradas. As promessas são ainda mais sérias, porque envolvem um compromisso de se dar algo valioso em troca, geralmente abstendo-se de algo prazeroso ou realizando algo desprazeroso, como andar de joelhos, ficar sem comer isso ou aquilo, ou parar com algum hábito pouco essencial, mas arraigado.

E há o caso em que narrarei agora.

Ele ocorreu por volta de 1980, não me recordo ao certo o ano. Lembro apenas que minha família passava por sérios problemas financeiros, como sempre era o caso, mas de forma mais aguda e desesperançada que o de costume. Era época de crise econômica, o Brasil vivia o fim do governo militar e tinha uma dívida externa impagável, e daria ou mesmo já dera um calote em seus credores, de forma que a economia não funcionava, não havia negócios em andamento, havia um incremento de inflação e meu pai, único sustento da casa, não conseguia dinheiro com seu trabalho, que era o da corretagem de imóveis rurais. Ninguém comprava ou vendia nada. Não havia comissões de corretagem e, portanto, não havia dinheiro entrando de tempos em tempos em casa para se pagar o aluguel, as dívidas do mercado, a gasolina do carro, as roupas das crianças.

Minha mãe ressentia-se da situação e a resposta era sempre a mesma: os negócios não estão dando certo. E assim foi por mais de um ano. A situação era de penúria.

Meu pai nunca parava em casa. Dizia que tinha que correr pelas redondezas da região para buscar fazer negócios. Mas passou a beber demais. O casamento não andava bem. Havia muita discussão em casa entre ele e minha mãe. Ela desconfiava que ele só poderia ter alguma amante. Ele desconfiava que algum inimigo ou rival nos negócios havia feito alguma feitiçaria para atrapalhar a sua vida, porque não havia como estar em situação tão ruim.

Minha mãe fazia o que podia para ajudar nas despesas. Doces, balas, salgados, bolos, bordados, panos de prato, tocas de lã, meias de lã, luvas de lã, flores de papel, hortas caseiras para economizar no mercado, tudo era tentado para se ter um mínimo de dinheiro entrando no dia a dia.

Eles não entendiam nada de economia e não eram capazes de perceber o contexto maior. Os problemas não eram vistos como conjunturais, mas pessoais.

Então as suspeitas de feitiçaria e amantes eram compartilhadas com amigas e amigos. Ele, aconselhado por algum amigo, resolveu ir a benzedores. Ela, mais sorrateiramente, resolveu descobrir como afastar amantes também pela feitiçaria. Mas eles não viam o ato de usar-se de benzedores como uma forma de feitiçaria. Eles supunham que os benzedores eram pessoas religiosas, abençoadas por Deus com algum dom sobrenatural, como a clarividência, o poder da cura, ou coisas do tipo. Eu fiz um relato no Caso 39 que exemplifica bem essa situação.

Assim, lembro-me do dia em que minha mãe conversou com uma amiga, que não me recordo mais quem seja, e depois de discutirem sobre um desses problemas recorrentes, em especial o risco de adultério por parte de meu pai, ou de que alguma outra mulher viesse a conquistá-lo a ponto dele largar seu casamento e seus filhos, e ainda mais em uma época de muita falta de dinheiro e carestia em casa, chegaram à conclusão de que deveriam realizar um procedimento ensinado por alguém que era muito eficaz para o caso. 

Em uma tarde calorenta de um dia de semana qualquer então minha mãe e sua amiga, aproveitando o momento em que meu pai não estava em casa, porque a presença e o conhecimento dele tornariam o procedimento inútil, decidiram que aquela era a hora de agir. Minha mãe, decidida a por um fim àquele problema não mais tolerável, tomou de uma garrafa com um líquido qualquer, não me recordo se água, pinga ou mel, ou vinho ou cerveja, e me chamando como companhia, tomamos o rumo de um morro próximo, fora do perímetro do vilarejo onde vivíamos. Foi uma caminhada rápida de meia hora. No topo do morro, um terreno poeirento, recém arado, adentramos no meio da terrarada em busca do local apropriado, segundo as orientações recebidas anteriormente pelo fornecedor da ajuda. Em geral havia um canavial no local, mas não neste dia. O que elas foram orientadas a procurar era um buraco de formiga, uma entrada de formigueiro, grande o suficiente para caber a garrafa inteira. E foi o que fizemos. Procuramos por um formigueiro grande e logo o encontramos. Agora restava enterrar nele a garrafa, mas não de qualquer forma. Era preciso que ela fosse enterrada de cabeça para baixo, com o fundo ficando aparente e depois coberto de terra. Do contrário, o procedimento não funcionaria. 

A garrafa coube perfeitamente no formigueiro e foi coberta de terra. Pronto! Agora era só uma questão de tempo até os problemas familiares acabarem. 

Descemos o morro com uma sensação de alívio e dever cumprido.

Mas as coisas não acorreram como o planejado.

E as coisas ainda hoje, passados mais de 40 anos desse dia, continuam a não sair como desejamos ou planejamos. E continuarão a ser assim até o fim dos tempos.

Se é assim, porque confiar no poder de uma garrafa enterrada em um formigueiro?

Mas certamente aquela não foi a primeira nem a última garrafa enterrada em um formigueiro. Minha mãe, embora ingênua e crédula, não era a inventora desse procedimento. Então, quem o inventara? E por que ele haveria de ter dado certo algum dia no passado? Ele evidentemente dera certo no passado. Do contrário, a sua suposta eficácia não teria se propagado no tempo e chegado ao ouvido de minha mãe.

Não sei que o inventou, nem como esse alguém conseguiu associar algum ganho ou milagre a uma garrafa previamente enterrada em um formigueiro, mas é muito provável que isso tenha ocorrido somente uma vez. E o mito se propagou.

E ele aos poucos deve ter morrido, porque nunca mais ouvi falar dele em lugar algum. É certo que se não morreu, morrerá em algum momento no futuro, porque não há nenhum nexo causal entre o que quer que seja que ocorra no mundo real que decorra de uma garrafa enterrada em um formigueiro. E na medida em que mais e mais garrafas são enterradas inutilmente, sem respostas reais na vida real, as pessoas que testam esse procedimento podem até dizer que o conhecem, mas dirão também que ele não funciona, e menos e menos garrafas serão enterradas, até que isso nunca mais ocorra.

Se você já ouviu falar neste procedimento, ou outro tão estranho e exótico quanto este, conte-nos. Sim, eu sei que há os vodus, mas esses já são crendices importadas e famosas. O que interessa aqui são esses procedimentos absurdos. Seria muito mais interessante saber como esses procedimentos ganharam credibilidade e sob a criação de quem, mas então já estou pedindo demais.

Você consegue pensar de que maneira uma garrafa cheia de algum líquido enterrada em algum formigueiro possa influenciar o andamento das coisas humanas?

Eu ainda não consigo entender.

Se você tiver um teoria explicativa, conte-nos.

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