Caso 47 - A bruxa

 A bruxa


Você acredita em bruxas? Ou bruxos?

Hoje em dia eles são populares em virtude do grande sucesso que tem sido os diversos livros e filmes da saga de Harry Potter. Mas as gerações mais velhas, como a minha, não tinham essa atração toda por jovens magos e seus fabulosos poderes. Antes de Harry Potter as bruxas e bruxos eram de outra categoria.

Eu também li sobre bruxos e bruxas em minha infância, ainda que não houvesse Harry Potter. Mas, mais que ler romances de bruxaria, havia as histórias supostamente reais, de bruxos e bruxas reais, que não eram personagens de ficção em livros recomendados nas escolas.

Eu morava, como os leitores deste blog já sabem, em um pequeno vilarejo quando era jovem. E lá também havia, senão bruxos e bruxas, pessoas suspeitas de o serem, segundo os adultos da época. Eu vivi nesse lugar na década de setenta e parte da década de oitenta. Parece que isso foi há muito tempo para os mais jovens, mas há pouco tempo para os mais velhos. De meu ponto de vista hoje, sendo já no final do Século XX, era de se esperar que não se ouvisse qualquer tipo de assunto relacionado a bruxas, mas sim, esse assunto rondava o vilarejo de vez em quando, a despeito da modernidade da época em que vivíamos. Afinal, bruxas eram coisas da Idade Média, a muito tempo encerrada nos livros de História, sem qualquer lembrança real por parte dos moradores do lugarejo. Mas então, de onde vinha esse assunto, se ninguém vivo ali tinha vivido na Idade Média? É que havia a Igreja Católica, padres, e muitos moradores eram filhos e netos de imigrantes europeus. Pais e avós que vieram de uma Europa moderna, mas ainda com muitas tradições medievais arraigadas em suas culturas, de forma que a crença em bruxas e bruxaria ainda persistia no vilarejo, ainda que de forma branda e velada.

Não havia um Harry Potter entre nós. Havia uma suspeita que pairava sobre uma pobre senhora, e havia uma boa razão para que isso ocorresse: é que ela tinha a perfeita aparência da bruxa velha tradicional, aquela dos contos de fada, dos livros infantis, das lendas antigas, das histórias de perseguição religiosa que todos tinham de alguma forma assimilado ao longo do tempo. Ela, na época em que a conheci, era uma senhora solteirona, muito pobrezinha, que tinha aquele corpo curvado, usava aquele lenço tradicional em torno da cabeça, tinha um nariz longo e curvo e por cima uma grande verruga.

Ela era muito conhecida de todos. Sendo o lugar pequeno, era certo que todos a conheciam e era também certo que ela conhecia todos. E de fato não era de forma alguma uma má pessoa, ou reclusa, ou mesmo fofoqueira. Era apenas velha e feia, pobre e solteirona, e levava uma vida dura que poucos conseguiam compreender. 

Certamente que nenhum adulto jamais pensaria seriamente que ela fosse uma bruxa. Para a grande maioria, era apenas uma senhora pobre, mas não infeliz. Ela, afinal, era sempre vista sorrindo, e vivia à custa de muito trabalho e esforço. Mas por isso mesmo os pais da criançada da época tinham que mantê-los de certa forma longe não dela, a mulher, mas de seu ambiente, este sim, arriscado e duro para os adultos, e perigoso para as crianças. 

É, portanto, preciso entender um pouco da vida de nossa pobre bruxa que não era bruxa. Para todos os efeitos, e em respeito à sua memória, a chamarei aqui de Senhora C.

Nesse período, no final dos anos setenta, ela, a senhora C., já tinha pelo menos setenta e cinco anos. E de fato era solteira. Nunca se casara. Tinha, pelos meus cálculos, nascido no início do Século XX. Não sei onde ela nasceu, mas certamente viera morar no vilarejo ainda jovem, porque o vilarejo foi fundado em 1918.

Ora, meu avô paterno fora um dos primeiros moradores do vilarejo. Ele não nascera no lugar, porque o lugar não existia. Meu avô só veio a morar ali porque viera em trabalho construindo a ferrovia que fundou o vilarejo. Havia ali uma pequena estação de trem, uma parada necessária para abastecer as locomotivas de água, e em torno dessa estação o vilarejo cresceu. Meu avô ficou por ali, casou-se e ali morreu.

Meu avô se estabeleceu no local em 1914, quando as obras da ferrovia chegaram no lugar. Mas junto com ele estavam seus irmãos. Um deles, o mais jovem, também se fixou no lugar, mas, ao contrário de meu avô, nunca se casou. Morreu sozinho bastante velho e vivido. E não era de forma alguma tratado como bruxo. Era apenas outro solteirão. 

Sim, meu tio-avô solteirão e a Senhora C., que também morreu solteirona, poderiam ter se casado. Eles chegaram a namorar. Era muita coincidência que ambos acabassem solteirões. Algo, no entanto, deu errado nesse relacionamento dos anos 20 do Século XX e o que era para ser um casamento comum acabou se tornando em duas vidas solitárias e difíceis. Não sei dizer o motivo do fracasso do namoro. Talvez tenha sido pelo fato de meu tio ser um beberrão. Não sei. É apenas uma suposição. De qualquer forma, meu pai sabia que ele e ela haviam namorado. E sendo o vilarejo um local com tão pouca gente, e de muito falatório sobre tudo, é provável que ambos não tenham conseguido novos relacionamentos e acabaram ficando solteiros até a morte.

Meu tio, ainda que solteiro, tinha familiares no lugar. Ela, até onde sei, não.

Quando me entendi por gente, a Senhora C. morava em uma casinha de uma água só, muito pequena, em um canto de uma rua que fazia divisa com a zona rural. Havia mais algumas casas próximas, mas a casa de C. era meio que em uma estradinha de terra que descia um morro rumo a um dos córregos que circunda o lugar. A estradinha tinha um portão de arame farpado e era rodeada de cerca pelos seus dois lados. No começo da estradinha havia a casa de C. e no final, bem na beira do córrego, havia um matadouro.

O vilarejo tinha um único açougue. O açougueiro, padrinho de meu irmão mais velho, era um senhor rijo e estiloso, que comprava gado nas redondezas e todas as sextas-feiras matava um boi ou vaca para vender no restante dos dias da semana. Como ele era padrinho de meu irmão, este sempre saía com o padrinho para andanças pelos sítios da região em busca de selecionar e comprar cabeças de gado para o abate. O vilarejo não demandava consumir mais do que um único animal por semana. Então, meu irmão e seu padrinho açougueiro iam de caminhonete, cuja carroceria era um engradado de madeira próprio para transporte de gado, e nas sextas-feiras, ou nas quintas, mais comumente, traziam um animal para ser abatido para consumo. Eles chegavam dos sítios da região, e a caminhonete se dirigia para o matadouro, onde havia um pequeno curral de madeira com uma ligação com o local de abate. Esse local de abate era um casebre de tijolo rústico, mas com um jogo de cordas e ganchos próprios para se trinchar gado. Havia ainda um tronco grosso fincado em uma das pontas do lugar, um tronco com um furo no meio por onde podia passar uma corda grossa. É que depois de colocado no curral, o animal a ser sacrificado precisava ser laçado e puxado pelo corredor cercado de madeira que ligava o curral ao matadouro, e depois tido a cabeça presa junto ao tronco, para então receber uma ou mais marretadas no crânio e cair quase morto, ou morto definitivamente, para então ser sangrado, aberto, retirado do seu couro, erguido nos ganchos e depois desmembrado, despedaçado e suas partes recolhidas envoltas em panos limpos e brancos até os balcões refrigeradores do açougue na rua principal da cidade, onde os pedaços seriam vendidos após separados e pesados ao gosto dos clientes.

A Senhora C. vivia desse negócio.

Ela ajudava a laçar o animal no curral. Ela ajudava a puxar o animal até o tronco. Ela ajudava a limpar o animal depois de morto. Ela fazia a lavagem do lugar depois de recolhidas as partes. Sangue, fezes, restos de partes não consumíveis, tudo era por conta dela. O couro era salgado e colocado em uma casinha logo perto do matadouro. Era ela que fazia esse serviço.

Podemos imaginar agora uma senhora com setenta e cinco anos de idade puxando um boi quase sozinha. É certo que das vezes em que assisti ao processo de matança e limpeza de cabeças de gado, e não foram poucas as vezes, sempre havia mais gente além do açougueiro e a Senhora C., mas isso era apenas algumas das muitas ocasiões em que houve matanças. Lembremos que cada ano tem cinquenta e duas semanas, e que uma década de trabalho, portanto, equivaleria, no mínimo, a mais de quinhentos animais arrastados pelas mãos, muitas e muitas vezes, somente do açougueiro e da Senhora C.

Ela tinha as mãos mais fortes que as da maioria dos homens da cidade. Era uma senhora rija, vergada pelo tempo, mas forte e saudável. A vida que levava, e as condições econômicas da qual dependia, no entanto, exigiam um estado de espírito que não era para as mentes mais sensíveis. 

Certamente que o ambiente do matadouro cheirava a morte. Ao lado do local de abate havia uma grande e ressequida árvore, da qual não me lembro de ter visto folhas, flores ou frutos. Nela sempre havia dezenas de abutres empoleirados, prontos a consumir o que fosse possível do que sobrasse daquelas matanças. O lugar recendia a morte. O cheiro forte de fezes secas de gado era constante. Dentes dos animais mortos, pedaços ressequidos de ossos brancos, se esparramavam em torno do casebre entremeio à grama do lugar. E o sangue derramado e lavado escorria por uma escadaria até o pequeno riacho, que se tornava turvo depois da primeira facada no coração de cada animal abatido.

A senhora C., portanto, vivia de restos. Ela, os abutres e os cães.

O açougueiro tinha um cão chamado Medonho, um buldogue com orelhas cortadas, que vivia na casa da cidade, ia de caminhonete pelos sítios afora, e tinha a missão principal de acuar os animais dentro do curral de forma a fazê-los entrarem no cercadinho rumo ao tronco onde seriam mortos. Nem todo animal se dispunha a ir pelo corredor sem esforço ou resistência. Mesmo laçado e puxado por mãos humanas, muitos deles, a maioria, lutavam arduamente contra o laço. Alguns saltavam o cercado. Medonho tinha a função de entrar no curral e encurralar o animal. Se houvesse resistência, Medonho normalmente se agarrava com os dentes ao focinho do animal, ou às vezes às patas traseiras, e de uma forma que somente os cães são capazes de fazer, conduzia a fúria e o medo em direção à morte.

Mas havia ainda os cães de C. E eles eram vários. Talvez seis ou sete, às vezes mais, às vezes menos. Ninguém nunca sabia quantos cães ela tinha.

A Senhora C. ficava com as tripas e miúdos não comestíveis em troca de seu esforço no matadouro. Depois de limpo o lugar às sextas-feiras, ela tinha o restante da próxima semana para pegar as tripas que sobravam e limpá-las, de forma que ficassem próprias para se fazer linguiças. E esse processo envolvia depois a secagem delas, agora finas e quase transparentes. Assim, sua casa, e as cercas à sua volta, eram uma espécie de preparação de tripas. Sempre havia tripas secando nos arames das cercas à volta da casa. As tripas prontas para serem embutidas eram vendidas, em geral para o próprio açougueiro. E todo o material extraído do processo de limpeza das tripas era coletado e aproveitado por C. para a fabricação de sabões.

Em um enorme taxo de metal assentado sobre um fogão de tijolos junto à casa, em uma pequena área coberta, C. fazia seu sabão caseiro. Juntava cinzas, soda cáustica e os restos de gordura e cartilagem removidos das tripas e misturava tudo no taxo, que fervia por horas e horas até formar uma massa cinza cremosa, que depois era esfriada, resultando em uma pasta homogênea que era partida em cubos generosos de sabão, que depois era vendido aos moradores do vilarejo para ser usado na lavagem de tudo, de roupas a louças e até mesmo para o banho diário dos corpos daqueles que não podiam se dar ao luxo, na época, de comprar sabonetes mais refinados e cheirosos. Não que o sabão de C. tivesse cheiro ruim. Ele era um produto simples, grosseiro, mas eficiente e barato. todos compravam. Todos usavam. Não havia problema algum com ele. Era com o dinheiro dessa venda que C. vivia. E não dependia da ajuda de ninguém.

Mas a sua vida era dura, e crianças não estariam em um lugar seguro durante a matança do gado. Sempre havia o risco de um animal desesperado escapar e pisotear algum menino curioso em torno do matadouro. Sempre havia, afinal, meninos curiosos subindo nas tábuas do curral procurando saber se o boi desta semana era bonito, forte, chifrudo, tinha cupim grande ou não tinha cupim, se era preto, de tal ou qual raça, se era vaca, se estava prenhe ou seja lá qual fosse o motivo que fosse. E havia os cachorros. E havia o riacho que não era usado por ninguém. Sempre havia como subir nos muros do casebre do matadouro. Sempre havia riscos para os meninos. Sempre.

Era por isso que os pais falavam para que seus filhos não ficassem perambulando pelo matadouro. Falavam que C. parecia uma bruxa, com seus cachorros barulhentos, sua voz alta e esganiçada, típica de idosos já com perdas auditivas devido à idade, e seu taxo fumegante, sua casa paupérrima cheirando a podridão das tripas secando ao sol e sua solidão tristonha e misteriosa.

Mas ela era mesmo uma bruxa, perguntávamos nós aos nossos pais? O que fazia uma bruxa? 

Mas de fato os desenhos animados, os livros de contos de fada, os filmes de suspense, tudo indicava que as bruxas eram senhoras perfeitamente parecidas com a Senhora C. em todos os detalhes. Afinal, não eras os sabões resultado de uma poção misteriosa que somente C. sabia manipular? Isso não era de certa forma alguma alquimia típica das bruxas?

E então alguém mais velho dizia que bruxas voam em vassouras. Ora, C. tinha varias vassouras, daquelas rústicas feitas de folhas secas de bambu ou outra planta com folhas longas, como palmeiras, de forma a manter seu terreiro limpo. E se C. voasse em uma dessas vassouras à noite?

Por fim, alguém disse que bruxas se transformavam em patas e voavam pelos campos durante as noites, dispensando a necessidade de vassouras. Isso me soou como uma novidade. Eu sabia que homens viravam  lobisomens, mas não sabia que bruxas viravam patas voadoras. E essa possibilidade despertou em mim uma série de visões em torno de C.

Agora eu a via pelas ruas com sua carriola velha cheia de pedaços de sabão à venda como uma nova pessoa, mais poderosa, mais misteriosa, mais cheia de segredos e experiências. Afinal, por onde ela haveria de voar nas noites de Lua cheia quando se transformava em pata? Ou mesmo que não houvesse Lua cheia, ou ela não pudesse se transformar em pata por alguma razão, ainda assim havia as vassouras. Por onde voaria a poderosa C. nas noites solitárias do vilarejo?

Eu a via em meus pensamentos fazendo voltas e mais voltas em torno do pasto que ficava em frente à sua casa. Não era um lugar muito grande, mas para onde mais ela poderia querer ir durante seus voos? Eu, se tivesse esses poderes, pensava comigo mesmo nas noites em que refletia sobre o assunto, não teria coragem de voar em uma vassoura para além dos arredores de minha própria casa. Por que C. haveria de querer ir mais longe do que eu? O que ela desejaria obter, senão a liberdade de fazer voltas a uma certa altura em torno de sua própria casa e sentir o vento fresco da noite enquanto o resto da cidade dormiria silenciosamente, cada um em sua cama, incapazes de voar e se refrescar sobre os pastos verdejantes dos arredores da cidade? Ser bruxa voadora era, para mim, uma forma de poder que fugia à compreensão, ainda assim. Não sabia como e porquê logo ela era capaz de voar e ninguém mais. E tinha uma vaga ideia de que isso se relacionava a algum poder que somente um ser maligno poderia conceber e conceder a quem a ele procurasse, mas não fazia ideia de quando e onde C. havia feito essa busca e como lhe teria sido concedido esse poder, que se encerrava em algo tão simples como uma vassoura comum, embora a transformação de uma senhora em uma pata branca e pescoçuda fugisse também à minha compreensão. Ela virava uma pata, embora em minha concepção mental ela de fato se parecesse mais com uma cisne branca e elegante que fazia voltas em torno de sua casa a não mais do que uns duzentos metros de altura.

Mas então o tempo passou, mudei de cidade e nunca mais voltei a ver a Senhora C.

Um dia disseram que ela morrera. Tinha vivido ainda mais uma dúzia de anos. Deveria ter cem anos quando nos deixou. Eu imaginava que quem quer que tivesse lhe dado o poder de virar pata também lhe tivesse dado o poder da eternidade, mas pareceu-me, com a notícia de sua morte, que esse assunto não foi acordado dessa forma. Pareceu-me que ela conseguiu apenas prolongar a morte por muito tempo, mas afinal o contrato chegara ao fim e ela teve que morrer, porque era mesmo muito, muito velha para continuar vivendo com somente seus poderes terrenos. Não sei onde está enterrada.

O vilarejo, a despeito de seu atraso e estagnação, ainda viu algum crescimento no número de casas. Foi justamente no pequeno corredor entre a casa de C., agora morta, e o matadouro, que os pobres da cidade resolveram construir suas casinhas, porque o local de alguma forma não tinha um dono, era uma propriedade da prefeitura e a morosidade dos governantes locais permitiu que dezenas de casa fossem construídas morro abaixo até cercar o matadouro. Uma vez instalados, os moradores acabaram ficando no lugar e a ruazinha de terra foi asfaltada, iluminada e nomeada. A ruazinha leva o nome de nossa querida Senhora C., a bruxa que não era bruxa, e  que merecidamente recebeu o nome dela como uma forma de homenagem a seu esforço, honradez e coragem de enfrentar a vida dura que o destino lhe legou.

Que Deus a tenha a seu lado.

Agora, bruxas de verdade existem ou não?

Nem toda bruxa se parece com a Senhora C., com seu nariz adunco e com uma verruga na ponta. Há bruxas e bruxos antigos e bruxos modernos. E eles estavam por aí na Idade Média, na Antiga e certamente estão presentes na atualidade. Apenas não me dei ao trabalho de compilar alguns deles muito conhecidos da mídia até.

Falaremos deles depois.

Agora, preciso encerrar esse texto com o convite a você, leitor, para que ajude-nos a enriquecer esse blog com a sua colaboração, o seu relato de experiências com bruxas, ou bruxos, se preferir, porque sei que você sabe que eles e elas existiram e ainda existem.

Portanto, sinta-se à vontade para postar nos comentários suas experiências sobre o tema.

Ficaremos felizes em conhecê-las.

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