Caso 45 - A facada
A facada
Há infinitas formas de se morrer. Entretanto, nem todas as formas nos são conhecidas imediatamente. Seria muito difícil imaginar alguém que tenha chegado aos dez, quinze anos de idade, e não tenha ouvido falar de que as pessoas morrem, não tenha ido a um velório, a um cemitério, ou que não tenha visto pessoas mortas em situações ainda mais cruas, como em acidentes de trânsito, mortes súbitas nas ruas ou vítimas de alguma espécie de violência, seja por tiros, ou suicídio, ou seja lá por qual motivo for.
Eu certamente já vira a morte de perto desde bem pequeno, como já relatei aqui neste blog. Mas em todos os casos foram mortes naturais, decorrentes de doenças e velhice. Mesmo pessoas jovens haviam morrido, mas também por doenças. E os acidentes de trânsito, embora muito comuns, não ocorriam dentro do vilarejo onde eu morava. Eles ocorriam nas rodovias, e sempre que víamos algum deles, já haviam recolhido os feridos e mortos.
Claro, eu via também alguma violência, como brigas entre torcedores de times de futebol, brigas de bêbados e infindáveis brigas de crianças e adolescentes. Havia as brigas dos adultos, mas essas sempre eram não muito sérias, porque no vilarejo todo mundo conhecia todo mundo e ninguém pretendia realmente fazer algum mal maior a algum rival além do que falar alguns desaforos e trocar alguns tapas.
Eu ouvira falar de um tio caminhoneiro que levara uma facada na barriga em uma briga de bar em algum posto de gasolina em algum lugar remoto do país, no interior da Bahia, se não me engano, mas ele se recuperara e nunca o víamos, porque ele morava em uma cidade vizinha e nunca parava em casa. Caminhoneiros são sempre assim.
Perdi um tio com um tiro no coração, mas isso não ocorreu em nosso vilarejo. Foi na mesma cidade vizinha onde morava meu outro tio caminhoneiro. E apesar de ser algo doloroso, não ficamos sabendo de muitos detalhes e a coisa ficou pelo relato de conhecidos.
Mas então, em 1984, quando eu tinha meus treze, quatorze anos, em um dia qualquer, um sábado de manhã, por volta do horário do almoço, houve um assassinato no vilarejo.
O boato correu rápido. Um amigo meu, meio alarmado, me contou em primeira mão. Ele morava em frente ao bar onde o crime ocorreu. Uma briga ocorrera entre dois moradores. Um deles, o assassino, era um homem de uns quarenta e cinco, cinquenta anos, pai de família, casado e com uns quatro ou cinco filhos já adolescentes e adultos, e morava perto do bar. Era uma família de paranaenses que se mudara para o vilarejo alguns anos antes. Não era a única família de paranaenses no local. Havia mais duas famílias, todas vindas no Oeste do Paraná, de Apucarana e Maringá. O vilarejo recebia vez ou outra moradores de fora da região. Mas algo de ruim deveria estar acontecendo no Paraná naquela época, a primeira metade da década de 80 do Século XX, que levavam os moradores daquela região do país a saírem de suas cidades em busca de lugares melhores. O vilarejo não era um lugar muito bom para se viver em termos econômicos, mas essas famílias ficaram e se adaptaram ao lugar. Esse homem era branco, típico paranaense, com um sotaque diferente do falar local. Trabalhava na roça. E morava com a família em uma casa alugada que era relativamente boa para os padrões de minha família. Apesar disso, provavelmente gostava de uma bebida nos fins de semana e ia a um dos bares locais próximos de sua casa com alguma frequência. Não sei o seu nome.
O outro envolvido, a vítima, era um pernambucano que também viera morar no vilarejo a pouco tempo. Vivia na mesma rua do bar, duas quadras além, em uma casinha alugada, daquelas pequenas de uma água, isto é, construídas junto a um dos muros do terreno e comprida e fina, com dois ou três cômodos, de forma que o terreno poderia comportar duas ou três dessas casinhas em um pequeno espaço, e assim proporcionar a seu dono dois ou três aluguéis mais baratos.
Desse pernambucano eu sei o nome, mas em respeito à sua memória, o chamarei apenas de P. nesse relato.
P. era um homem relativamente jovem, com uns 30 anos, ou um pouco mais. Era baixo, magro, mulato, forte e com o cabelo encaracolado. Rosto chupado, boca fina, era um trabalhador braçal. Trabalhava na roça também. E morava sozinho no quartinho do beco.
Neste sábado, o paranaense e P. se encontraram bebendo em um dos três ou quatro botecos da rua principal do vilarejo. Por volta do horário do almoço, acabaram batendo boca. Parece que houve alguma agressão entre eles. Parece que P., mais jovem, mais forte e mais ágil que o paranaense, andou se saindo melhor nos tapas. Aparentemente eles já vinham tendo atritos desde semanas antes dessa briga. Eles não se entendiam por motivos que não faço ideia.
Aparentemente humilhado por algum soco ou tapa, o paranaense saiu do bar e foi para casa. Lá, pegou uma faca de cozinha e voltou sorrateiramente para o bar, mas não entrou. P. ainda estava lá, dentro do bar, fazendo não se sabe o quê. Mas era a hora do almoço e P. já iria para casa almoçar. O paranaense ficou do lado de fora, junto à parede ao lado da porta do bar, monitorando os movimentos de P.
Quando P. saiu para a rua, ao pisar na calçada, o paranaense o pegou pelas costas, envolveu seu pescoço com um braço e com a outra mão livre deu uma série de facadas no peito de P., que não teve como se esquivar ou fugir. O paranaense era mais alto que P. e este, pego na traição, nada pode fazer.
P. caiu logo ali mesmo.
As facadas são feridas mortais. A maioria das vítimas de facadas nem sofrem muito. Sangram silenciosamente pelas feridas internas e morrem rapidamente, em dois ou três minutos após os golpes.
O paranaense, agora vingado de sua humilhação, mesmo à custa de ser também agora um criminoso, um assassino, tomou o rumo de casa.
A vizinhança chamou a polícia, que não havia no vilarejo, mas somente na cidade principal, a alguns quilômetros mais adiante. Logo ela chegou, fez os procedimentos de praxe, tirou fotos, recolheram o corpo da vítima, prenderam o paranaense e foram embora. Algum sangue escorreu na calçada, mas os moradores logo jogaram uma água e tudo ficou limpo como se nada houvesse ocorrido.
Apenas as pessoas do local é que agora tinham um olhar mais assustado quando falavam no assunto.
Afinal, fora o primeiro crime de assassinato no local desde sua fundação, a setenta anos atrás antes do crime. Por setenta anos os moradores viveram longe das ameaças dos grandes centros. Nunca ninguém havia matado ninguém naquele lugar. E todos sabiam que tanto assassino quanto vítima não eram de fato os verdadeiros moradores pacíficos do vilarejo. Afinal, fora gente de fora, gente sem raiz local, gente com costumes diferentes, gente violenta e vingativa, que provocara aquela tragédia. Mas, apesar disso, o país era livre, as pessoas eram livres para morar onde quisessem e em sua agonia também trágica, o povo brasileiro trançava sua trama de idas e vindas em busca de lugares melhores em um momento econômico desastroso como o foi a famosa década perdida.
O paranaense foi condenado pelo seu crime.
Ficou vários anos preso. Sua família, ainda morando no vilarejo, era agora um grupo de pessoas envergonhadas que, apesar de continuarem morando no lugar, pareciam pedir desculpas pelo ato monstruoso do pai aos demais moradores. Certamente que ficaram sabendo da novidade que era ter um assassino morando no vilarejo. Mas ficaram por ali, dois dos filhos homens casaram-se com moças do lugar, o tempo passou e a pena do paranaense foi cumprida.
Ele foi solto e voltou a morar com a sua família. Mas nessa época eu já não mais morava no vilarejo. Tudo que sei é que ele deve ter passado pelo menos uns dez anos preso. Como era um homem relativamente velho, sem antecedentes criminais, e por ter certamente se arrependido de seu comportamento, foi solto antes do que poderia ter esperado em decorrência de sua sentença. As leis penais foram abrandando ao longo de sua sentença e ele saiu mais cedo do presídio por bom comportamento.
Já envelhecido, adquiriu os hábitos dos homossexuais. Não sei se já o era, embora não demonstrasse ser, ou se se afeiçoou ao homossexualismo no decorrer de seus longos anos encarcerado. Talvez tenha sido molestado sexualmente em cativeiro. Talvez tenha molestado outros presidiários. Esse assunto é complexo e não nos aprofundaremos nele aqui. O caso é que sua família relatou essa mudança de comportamento após sua saída do presídio.
Mais tarde, deste mesmo beco outra história emergiria, mas não a relatarei agora.
De toda forma, houve alguma justiça.
Não sei onde foi enterrado P. Não sei se teve algum familiar seu em seu enterro.
O que leva alguém a agir impulsivamente, ou, pior, premeditar por algumas semanas, e matar outra pessoa, sem medir, ou, pior, a despeito das consequências legais que decorrem desse agir?
Não sei, e mesmo que tivesse a oportunidade de saber o que pensava o paranaense naquele momento, prefiro não saber.
Isso não me impediu e nem me impede de me ver livre das facadas.
Elas continuam a ocorrer. Seja no Brasil, e agora, mais do que nunca, pelo mundo todo, via internet, é difícil o dia em que não vemos relatos de ataques com facas.
E você, leitor, já viu um caso parecido?
Provavelmente sim.
Se quiser, conte-nos sobre sua experiência.
Não ficarei feliz em saber que alguém foi morto por faca ou por qualquer outro modo que seja, mas a vida não muda em decorrência desse meu sentimento. Ela é o que é, e ela inclui as facas.
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