Caso 43 - Macumba
Macumba
Uma das primeiras e mais assustadoras experiências que tive com fenômenos estranhos refere-se à macumba.
Que experiências foram essas? Por que elas foram assustadoras? E por que afinal podemos considerá-las como uma espécie de fenômenos estranhos?
Primeiramente falemos das experiências em si.
Quem, afinal, no Brasil, nunca viu uma oferenda de macumba?
Não vou me envolver no problema do sincretismo religioso, nas origens da macumba em seu sentido religioso ou teológico, e nas suas vertentes africanas, brasileiras, caribenhas ou de outras localidades. Também não vou me embrenhar nas vertentes de nomes e variações de credo da macumba, como candomblé, saravá e assim por diante. Considerarei aqui apenas a visão leiga e popular do tema, a tradicional religião, ou credo, de origem africana, genericamente chamada de macumba, mas que pode manifestar-se fisicamente fora dos seus locais de culto, mas ruas e esquinas, quase sempre com o nome de macumba, embora quem a pratique ou quem a externalize possa não ser adepto da macumba, mas do candomblé, ou qualquer outra crença, e tratarei dessa manifestação externa como macumba.
Um dia eu, na época um menino, vi pela manhã ainda bem cedo, depois de avisado pela vizinhança e pela minha mãe consternada, que alguém havia feito macumba na esquina de casa. E lá fomos ver, eu e meus irmãos, de longe, é verdade, aquele conjunto de objetos conhecidos, e ao mesmo tempo estranhos e agrupados, cujo significado nos fugia, mas não a intenção do conjunto.
Era uma famosa oferenda. Havia pratos, velas coloridas, uma ave morta, flores, garrafas de bebidas alcoólicas e talvez uma ou outra coisa a mais, colocadas em um canto de uma esquina, um lugar tão inocente e puro, local de nossas brincadeiras diárias. Alguém, nos disseram, colocara aquilo ali para a adoração de demônios, e o objetivo final era maligno, tinha em vista prejudicar alguém, um desafeto, um inimigo, uma ex-amante, ex-esposa, ex-marido, ou colega de trabalho, ou rival em algum aspecto da vida, seja rival no amor, no trabalho, nos negócios, na política, ou simplesmente uma pessoa odiada, ou cobiçada, mas não acessível. Aquela tralha no canto da rua tinha, nos disseram, o objetivo de obter, via o auxílio de forças malignas de natureza espiritual, aquilo que o ofertante não era capaz de obter por seus meios e recursos normais. Aquilo era uma espécie de atalho, um mecanismo poderoso por meio do qual um ser humano comum usava de tralhas baratas para obter, via oferenda um um ser poderoso, aquilo que por ele próprio não era capaz de conseguir.
E aquilo me pareceu bastante assustador.
Afinal, eu era um garoto cristão. Todos os moradores daquele pacato vilarejo onde eu morava também o eram. Todos sabiam que Cristo era o salvador, e que o caminho normal para se pedir algo a alguém espiritualmente mais poderoso era a oração, quer feita em silêncio, no escuro do quarto na hora de dormir, quer feito na missa, ou quer feito abertamente, diante de um padre ou de amigos em uma igreja. Oferendas somente eram feitas a Deus, e todos sabiam do Mal, do maligno, dos entes caídos que a Bíblia cita. Não passava pela minha cabeça que em dias atuais havia adoradores de seres que não fossem do bem. Eu sabia de bezerros de ouro, templos pagãos de povos há muito desaparecidos, e sabia de povos vivos adoradores de deuses exóticos em continentes distantes, ainda não convertidos ao cristianismo, mas ali, naquelas ruas onde todos conheciam todos, não era de se esperar macumbeiros.
Mas a tralha provava o contrário.
Era como se, cansado de pedir a Deus e ser ignorado, alguém tivesse se resolvido a uma espécie de vale-tudo para ter o que pretendia.
Quem era essa pessoa? Como aprendera a fazer aquela oferenda? Seria somente uma pessoa ou um grupo delas? Havia ouvido falar dos terreiros de candomblé, onde grupos se reuniam, mas não havia nenhum terreiro no vilarejo. Onde haveria terreiros então? Na minha inocência, não me ocorrera que as pessoas adultas poderiam circular pelo mundo, ir a outras cidades, frequentar lugares que não frequentavam no vilarejo. E isso me pareceu uma forma assustadora de poder, porque havia um detalhe nesse acontecimento: quem provavelmente teria praticado aquela oferenda era uma pessoa dentre o grupo dos mais pobres do vilarejo, daqueles que morariam em casas realmente modestas, trabalharia na roça, em um serviço pesado, andariam sempre a pé, sem carros, bicicletas ou mesmo calçados e roupas decentes, e essa pessoa seria quase que certamente um homem ou mulher relativamente jovem, embora adulta, cheia de ambição e inconformismo com o status quo próprio e do ambiente local. Essa pessoa simplesmente não estaria disposta a esperar que o tempo corresse o quanto fosse necessário para ter aquilo que ela desejava, para obter aquilo que queria. O que seria isso que ela tanto desejava? Seria uma mulher o objeto de seu desejo? Ele, o ofertante, simplesmente não podia se dar ao luxo de perder uma pretendente que já estaria noiva ou casada com um outro alguém? Ele desejaria que um comerciante qualquer fosse à falência para ocupar o seu lugar? Ele desejaria que uma determinada pessoa tivesse uma doença para que então precisasse de dinheiro e tivesse que vender um bem qualquer, um carro ou uma casa, a um preço mais baixo e então o ofertante seria o beneficiário da tragédia que ele próprio invocara? Não sei.
Só sei que, fosse quem fosse, do que mais seria capaz aquela pessoa, ou aquelas pessoas, já que estavam dispostas a abandonar Deus e suas promessas por um caminho mais fácil? Elas poderiam brigar, elas poderiam ameaçar, elas poderiam trair, elas poderiam matar para ter aquilo que queriam. Eram pessoas ambiciosas e revoltadas com as coisas, com a situação da vida, e essa ambição e revolta me pareceram uma ameaça que eu até então, um menino, não tinha ainda considerado. O mundo para mim passou a ser um lugar mais perigoso depois dessa manhã.
Mas, como eu nunca soube quem fizera aquela oferenda, e nem seus motivos e seus desejos, nunca poderia vir a saber se o poder daquele método era eficaz ou não.
É certo que vi as pessoas mais suspeitas, as mais pobres e mais propensas a esse tipo de comportamento, viverem suas vidas por mais alguns anos enquanto vivi naquele vilarejo. E a vida delas não melhorou de forma tal que eu pudesse observar algum ganho que fosse obviamente decorrente do poder da macumba e não de outra força qualquer, como a força do trabalho e da previdência financeira, ou da educação, ou mesmo da mera sorte. Tudo continuou aparentemente como sempre o fora.
Mais tarde viemos a morar bem próximos desse pessoal mais pobre, porque também éramos muito pobres, talvez até mais pobres do que a maioria deles, e pude ver que de fato a macumba não era uma solução, embora pudesse se uma prática adotada aqui e ali por alguns deles. Nunca identifiquei nenhuma pessoa em particular que o fosse ou que o admitisse ser. Tinha uma ou duas pessoas suspeitas. Não sei se eram mesmo ou não. E a vida delas não foram nada boas, com ou sem a macumba.
Vi mais casos de oferendas em esquinas, mas já não eram assim tão impactantes. Somente me passavam a ideia de que as pessoas ainda lutavam com seus problemas por todos os meios.
E havia os cemitérios. Um cemitério abandonado e não muito longe do vilarejo, o qual visitávamos de vez em quando, sempre tinha oferendas relativamente recentes, ou restos de oferendas, que identificávamos pelos restos de velas coloridas. E havia o cemitério da cidade principal do município, que era ainda um cemitério relativamente novo e sempre era local de recepção de oferendas de pessoas da região.
Depois, por meios dos filmes, e mesmo de desenhos animados, vim a tomar conhecimento do fenômeno do vudu, ou mais precisamente, daqueles bonequinhos feitos à mão no formato do alvo desejado, e que eram espetados por agulhas no intuito de fazerem o alvo real sofrerem as dores das agulhadas sentidas pelo alvo inanimado, que de fato não sentia dor alguma, numa espécie de controle remoto do mal, e que exatamente pela sua impossibilidade lógica à luz da ciência até então conhecida, era um fenômeno mais digno de riso do que de crédito. Entretanto, vi uma ligação entre o vudu e a macumba.
O que há de estranho nesses fenômenos, já que até os personagens de desenho animado os satirizam?
Eu noto três pontos de observação, que me mostram algo estranho, algo fora da normalidade, quando esses casos, ou métodos, são melhor analisados.
O primeiro ponto é o próprio usuário do método e sua ambição, ódio ou capacidade de ousar diante de um desejo tão ardente que o faz transpor barreiras éticas, culturais e sociais. O qual perigoso pode ser, ou já é, um usuário desse artifício, ainda que o saiba pouco ou totalmente ineficaz? Essa pessoa possui algum distúrbio psíquico ou psicológico, tal como, por exemplo, traços de psicopatia, ou outro problema parecido, e, portanto, essa pessoa precisa de ajuda ou de tratamento ou mesmo de ser observada, já que pode ser uma ameaça ao resto da sociedade?
O segundo ponto é o destinatário, ou o alvo, do desejo do ofertante.
É certo que na maioria das vezes não está evidente quem é esse alvo. A ignorância quanto ao alvo torna a prática ainda mais assustadora e perversa para aqueles que acreditam na sua eficácia, porque, e se o alvo for a própria pessoa que acredita na eficácia, ainda que não se saiba de fato quem é o alvo? Uma pessoa crédula pode pensar que ela é o alvo. Essa pessoa pode se sentir como sendo manipulada por forças espirituais que estão além de sua capacidade de controle. E como ela não sabe quem é o ofertante, ela pode sentir que pode ter um inimigo oculto tentando prejudicá-la. O que ela fez para ser o alvo? E quem ela ofendeu para ser alvo desse alguém?
E há mais. Entre os crédulos, uma pessoa pode ameaçar outra simplesmente afirmando que se não obtiver da vítima aquilo que deseja, a vítima será forçada a atender o ofensor simplesmente contra a sua vontade, bastando que o ofensor use das forças espirituais que irá invocar via uma oferenda e um pedido, de forma que é melhor que a vítima atenda agora os interesses do ofensor, do que ter de atendê-lo depois, por meio de imposição, e dos prejuízos que fatalmente virão junto, promovidos por forças espirituais, que de fato não podem ser apaziguadas pela vítima, nem ser conhecidas, de maneira tal que entre crédulos, o apelo a entes espirituais é uma forma de ameaça que pode levar as vítimas a situações profundamente indesejáveis do ponto de vista psicológico e financeiro, quando não for consideradas mesmo como situações de assédio e crime.
E por fim, quem são, ou, mais precisamente, quais são esses entes espirituais que são invocados, ou chamados, a atender um desejo de um ser humano em troca de uma oferenda, cuja parte visível não passa de banalidades cujo valor e poder dificilmente podemos compreender, mas que em conjunto, e talvez também, em conjunto com oferendas de cunho não visível, podem ser capazes de convencer esses entes a praticar o mal contra uma terceira pessoa que não lhes dizem respeito, mas que passa a ser vista como um alvo legítimo de seus poderes, já que receberam para fazer esse serviço sujo, de forma que uma galinha morta fale para eles mais que uma vida humana?
Assim, se houvesse, ou se há de fato, seres dessa natureza, quão estranhos são em suas escalas de valores quando comparados a humanos ou mesmo com entes de natureza espiritual mais conhecidos, como os narrados na Bíblia e em outros livros e tradições religiosas?
Faz sentido, por exemplo, destruir um casamento feliz para que se tenha para si uma oferenda de uma vela vermelha queimando por uma ou duas horas em uma esquina de uma rua qualquer em um vilarejo esquecido no mundo? Que espécie absurda de ser ou ente espiritual julga valer mais uma vela que uma família feliz?
E assim concluo esse primeiro texto sobre o tema, que considero relevante e atual.
É certo que a primeira macumba que vi foi em 1979 ou próximo dessa época, mas definitivamente não foi a última. Ontem, em pleno 2024, minha esposa, voltando de uma caminhada pelas ruas próximas do local onde hoje moramos, relatou ter visto, e pela segunda vez, mais uma vez, portanto, um vaso cheio de pés de galinha.
É mais um caso típico de macumba, em uma esquina de uma das maiores cidades do mundo, em um bairro central que é uma literal selva de pedras, onde ninguém desconhece um celular, uma nave espacial, a existência de galáxias e de remédios avançados, e cujos moradores possuem renda acima da média nacional e mundial, dentre os quais muitos, se não a grande maioria, já rodaram o mundo conhecendo países desenvolvidos e atrasados, e que já passaram, em sua maioria, pelos bancos das faculdades, e que, portanto, deveriam supor que pés de galinha não são armas espirituais.
Mas o relato de ontem me faz crer que ao menos algumas dessas pessoas continuam supondo que, sim, pés de galinha são armas espirituais, apesar do que sugere a esmagadora evidência em contrário. Depois do relato de ontem, entendo que o assunto é relevante porque, afinal, o que estamos perdendo, ou deixando de perceber nesse assunto, que julgávamos uma simples piada, mas que insiste em se fazer presente nas esquinas como um desafio aos incrédulos e aos céticos?
Porque, afinal, o progresso, não importa o quão grande seja, não é capaz de fazê-lo debelar-se definitivamente e, se se faz presente onde jamais deveria se fazer, ao se fazer presente mais desafiadora a sua presença o é, e mais poder demonstra ter porque, afinal, avançou, e não retrocedeu, ao longo do tempo e do avanço da ciência. E esse avanço estaria sugerindo que só existe porque a macumba funciona, e só funciona porque quem a usa colhe os frutos dessa efetividade, e ficamos com as perguntas, quase silenciosas, que precisam ser feitas: e se funcionar de verdade, como e por que funciona?
Essas perguntas deverão ter uma resposta, mas não agora. Elas ficam no ar neste blog até termos mais oportunidade de falarmos no assunto com mais calma e profundidade.
E você? Já viu uma macumba? Acredita em sua eficácia? Por que?
Conte-nos o que pensa sobre o assunto.
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