Caso 39 - O benzedor

Que poderes místicos as pessoas podem ter de fato? Elas podem realizar curas ou ver o passado e o futuro?

Pessoas podem realizar milagres?

Não possuo uma resposta agora, mas gostaria de continuar a discutir o tema falando um pouco mais sobre os supostos poderes milagrosos humanos. Já falei em postagens anteriores sobre supostas evidências de milagres atribuídos a padres, santos e outras figuras religiosas, mas não são somente essas figuras que alegadamente detêm poder para realizar fenômenos fora da normalidade conhecida.

É evidente que essas supostas capacidades são geralmente atribuídas a pessoas ligadas a alguma religião. No nosso mundo moderno, temos na religião cristã um exemplo na qual esses fenômenos são relativamente comuns. Tanto no Velho Testamento quanto no Novo Testamento encontramos casos de milagres de cunho religioso. Jesus realizou incontáveis milagres. E esse poder, aparentemente fruto da fé, não se restringiria a personagens bíblicos, mas estaria igualmente disponível a qualquer ser humano com fé suficiente para exercer esse poder. Assim, os milagres continuam a ser relatados mesmo nos dias de hoje, quando então a sociedade moderna toma o devido cuidado em dar-lhes crédito, mas nem por isso os ignora.

Como a fé é um atributo invisível e não mensurável, pessoas alegam tê-la com força suficiente para realizar coisas fora da normalidade, o que nem sempre implica em um milagre. Seria algo entre o normal e o milagroso, mas nem por isso menos curioso de se entender e estudar. Casos de cura, capacidade ampliada de percepção do passado ou do futuro, capacidade de diagnósticos de problemas psicológicos ou de saúde são alguns desses poderes. E não são raros os casos de pessoas que alegam deter algum desses poderes, e mais comuns ainda são as pessoas que se socorrem ou recorrem a essas pessoas de alguma forma poderosas. Afinal, quem nunca ouviu falar de benzedores, curandeiros, chás, remédios naturais e garrafadas milagrosas para todos os males possíveis?

Essa categoria de pessoas e fenômenos merece um pouco mais de atenção de nossa parte porque embora a grande maioria deles não passe de curiosidade, mistificação, embuste e mero acaso ou sorte, ainda há um percentual, ínfimo, é verdade, que pode despertar um cuidado maior, por ocultar algum poder no acontecimento que de fato pode estar fugindo da normalidade científica.

De minha parte, lembro-me de que meu pai sempre falava de sua mãe, minha avó materna, como sendo uma mulher quase santa. Não a conheci. Meu pai nascera em 1945 e fora um filho tardio, com meu avô já com seus 50 anos de vida, e minha avó com mais de 40 anos. Assim, quando meu pai ainda era jovem seus pais já eram quase idosos. Minha avó morreu por volta de 1962 quando tinha somente 56 anos de vida. Meu pai tinha apenas 17 anos. Ele se casou com 22 anos e tinha 25 anos quando eu nasci. 

Minha avó era mulher simples nascida na roça e quase analfabeta. Casara cedo, tivera 8 ou 9 filhos e tinha problemas cardíacos. Mas era muito devota e tinha muita fé. De alguma forma, em algum momento de sua vida, ela passou a usar da força de sua fé e de orações para benzer as pessoas em busca de algum benefício. Naquela época de muita pobreza, solidão e desconhecimento de tudo, fé e orações eram alguns dos poucos recursos que as pessoas mais simples dispunham para se socorrer antes de sucumbirem diante de doenças e problemas maiores de qualquer natureza.

Não sei como minha avó agia, nem de que recursos tomava mão para tentar ajudar. Nem sei se era dotada de algum poder efetivo, se curou ou ajudou a curar alguém, ou se era apenas um ser humano caridoso cheio apenas de boa vontade, mas incapaz de algum apoio real. Ouvi um ou dois casos de pessoas fora da família que a conheceram a foram benzidas por ela, mas foram apenas pessoas que se lembravam de sua bondade e carinho. Não ouvi nenhum relato pormenorizado de como se deu a ação de minha avó.

Mas ela não era a única a benzer as pessoas no local em que vivi quando menino. 

Havia uma outra senhora, muito velha e meiga, uma pessoa simples, viúva, que morava em uma casa velha com seus filhos solteirões, adultos que a ajudavam a sobreviver naquela época singela no interior do país.

Ela era boa para benzer as crianças. Minha mãe nos levava até ela vez ou outra. Recordo-me de que ela ajudava a curar caxumba, uma doença comum naquela época. A caxumba deixava nossos pescoços doloridos e com ínguas. Ela então fazia as suas orações junto a nós, que ficávamos sentados em uma cadeira, enquanto ela orava sobre nossas cabeças. E ela usava uma colher de pau, dessas comuns em quase todas as cozinhas, para ajudá-la a curar as nossas ínguas. Era uma colher velha e muito lisa, fria e ao mesmo tempo suave, e aquela senhora passava a parte externa da concha da colher, agradavelmente fria, por sobre cada uma das ínguas em cada lado de nossos pescoços. Às vezes só aparecia uma única íngua de um lado, mas às vezes eram duas ínguas, uma de cada lado. Às vezes tínhamos um pouco de febre, daí a sensação agradável que a colher de pau nos proporcionava. De qualquer forma, ela esfregada várias vezes a colher nas nossas ínguas e em cinco minutos tudo estava terminado. Estávamos benzidos e a caxumba iria embora mais cedo ou mais tarde.

Mas a vida naquela época não era somente povoada de crianças doentes e benzedeiras bondosas. 

Os adultos daquela época, anos 1970 e 1980, também eram crédulos e cheios de seus próprios problemas, carentes de soluções místicas. Havia parte da pequena sociedade local que era adepta da macumba. Usando de rituais, que nunca presenciei, e de arranjos de objetos como comida, animais, bebidas e velas coloridas, os quais vi algumas vezes em encruzilhadas, cemitérios e beiras de estradas, essas pessoas procuravam meios de resolver esses problemas. Em geral eram dificuldades conjugais, intrigas familiares ou com vizinhos, falta de dinheiro ou emprego, promessas de curas de doenças ou tentativas de conquistar algum amor refratário.

Mas a macumba, embora comum, não era bem vista pela comunidade católica. Havia uma restrição a ela em virtude de sua origem africana. Não que houvesse algum traço de racismo ou xenofobia religiosa. Aparentemente o problema se relacionava às entidades as quais se deveria recorrer. As tradições africanas como macumba, candomblé e outras mais eram inadequadas porque havia uma suposta mistura de entidades boas e ruins. E um cristão católico não poderia jamais se recorrer de uma entidade apta a fazer o mal. Seria como pedir ajuda ao diabo. Figuras como Exu e outras eram tidas como capazes de fazer o mal. Logo, eram vistas como Satanás ou algum anjo ou entidade a qual não se devia pedir favores. Assim, como em minha casa naquela época tanto meu pai quanto minha mãe fossem católicos, nunca os vi recorrerem à macumba ou outra forma de apoio religioso de origem africana.

Mas nem por isso meus pais deixavam de ter os problemas típicos dos adultos. Em especial os problemas conjugais e financeiros. Meu pai era um alcoólatra inveterado e sem renda fixa. Era um corretor de imóveis, mas naquela época, de muita inflação e crises econômicas intermináveis, sempre faltava dinheiro. E como bebia, sempre havia o risco de um caso extraconjugal. Minha mãe, diante desses problemas, e sem uma solução racional à vista, percebia que a solução talvez fosse o apelo ao misticismo.

De um lado havia um problema de diagnóstico dos problemas. Não era uma deficiência somente de meu pai ou minha mãe. Era uma deficiência coletiva. Se minha mãe reclamasse com uma amiga, era quase certo que a amiga diria que a causa dos problemas era algum feitiço, ou macumba, ou mau olhado que alguém fez para atrapalhar a vida, o casamento ou a prosperidade de minha família. Não era uma questão de economia e de vício, nem de crise econômica e nem de inexperiência de vida e inadequação profissional. Era o resultado de pessoas invejosas, ambiciosas, interesseiras e ciumentas.

Logo, a solução era pelo mesmo caminho. Era preciso saber se era mesmo um caso de maldição ou macumba, se era possível saber quem o fizera, e, mais importante, saber como quebrar essa maldição, como voltar a ganhar dinheiro, como garantir que ninguém roubaria o amor e os desejos de meu pai, como se livrar das artimanhas de forma a prosperar na vida de verdade.

Então era comum que as pessoas próximas à minha mãe e meu pai recomendassem este ou aquele benzedor como se recomendasse um especialista médico ou um advogado célebre. Meus pais pareciam concordar com a causa e a solução dos seus problemas, porque seus esforços eram conjuntos na maior parte das vezes. Alguns lugares e algumas pessoas procuradas como auxílio somente eram acessíveis em outras cidades, mas tanto meu pai quanto minha mãe se esforçavam para alcançar essas pessoas e retornavam a elas com frequência. Não era somente minha mãe que era frágil diante dessas supostas soluções milagrosas, ou meu pai. Eram ambos.

Assim, lembro-me do dia em que minha mãe conversou com uma amiga, que não me recordo mais quem seja, e depois de discutirem sobre um desses problemas recorrentes, provavelmente o risco de adultério por parte de meu pai, ou de que alguma outra mulher viesse a conquistá-lo a ponto dele largar seu casamento e seus filhos, em uma época de muita falta de dinheiro e carestia em casa, chegaram à conclusão de que deveriam realizar um procedimento ensinado por alguém que era muito eficaz para o caso. 

Era uma tarde calorenta de um dia de semana qualquer por volta de 1980 quando minha mãe e sua amiga, aproveitando o momento em que meu pai não estava em casa, porque a presença e o conhecimento dele tornariam o procedimento inútil, decidiram que aquela era a hora de agir. Minha mãe, decidida a por um fim àquele problema não mais tolerável, tomou de uma garrafa com um líquido qualquer, não me recordo se água, pinga ou mel, ou vinho ou cerveja, e me chamando como companhia, tomamos o rumo de um morro próximo, fora do perímetro do vilarejo onde vivíamos. Foi uma caminhada rápida de meia hora. No topo do morro, um terreno poeirento, recém arado, adentramos no meio da terrarada em busca do local apropriado, segundo as orientações recebidas anteriormente pelo fornecedor da ajuda. Em geral havia um canavial no local, mas não neste dia. O que elas foram orientadas a procurar era um buraco de formiga, uma entrada de formigueiro, grande o suficiente para caber a garrafa inteira. E foi o que fizemos. Procuramos por um formigueiro grande e logo o encontramos. Agora restava enterrar nele a garrafa, mas não de qualquer forma. Era preciso que ela fosse enterrada de cabeça para baixo, com o fundo ficando aparente e depois coberto de terra. Do contrário, o procedimento não funcionaria. 

A garrafa coube perfeitamente no formigueiro e foi coberta de terra. Pronto! Agora era só uma questão de tempo até os problemas familiares acabarem. 

Descemos o morro com uma sensação de alívio e dever cumprido.

Mas as coisas não acorreram como o planejado.

Algum tempo depois meus pais descobriram um senhor benzedor em uma cidade vizinha que era tido como certeiro nos seus poderes e ensinamentos.

Ele morava numa chácara na cidade vizinha. Tínhamos de ir de carro até lá. Tínhamos um Fusca velho e o benzedor atendia somente aos sábados à tarde. Seguíamos por uma estrada parte asfaltada, parte de terra, e depois entrávamos em uma estradinha lateral à direita antes de chegarmos à cidade vizinha mais ao Sul. Era uma estradinha que descia um morro meio íngreme. A casa dele era uma casinha de roça simples, com galinheiros com tela de arame fino e pés de jabuticaba miúda. Havia um riacho mais ao fundo. Ele atendia em uma mesa no terreiro, debaixo de um dos pés de jabuticaba, em um trecho de chão cimentado. Era um senhor de uns setenta anos ou mais. Era casado e sua esposa, também velhinha e miúda, ficava por perto, na porta da cozinha da casa, com vestido florido e avental, observando tudo em silêncio.

Às vezes havia outras pessoas aguardando atendimento antes de nós. Nesse caso tínhamos de esperar. Às vezes não havia ninguém na frente e éramos atendidos logo.

O método do velho era o de primeiro entender o que estava acontecendo, e depois aconselhar alguma solução, mas não era tão simples assim. Em um primeiro encontro, apesar da narrativa inicial do problema, a pessoa consulente era orientada a retornar em um próximo sábado trazendo uma garrafa com algum líquido dentro. Não me recordo, mas creio que era mel. E não me recordo também, mas creio que ele próprio vendia o mel já engarrafado. De alguma maneira, parecia que era preciso que a garrafa com mel ficasse na residência do consulente por alguns dias até incorporar alguma característica local e depois o consulente deveria voltar com a garrafa com o mel agora já, digamos, batizado pelo ambiente do consulente. E então o velho tomava da garrafa com o mel impregnado dos sinais, emoções ou registros psíquicos da residência ou da mente ou do ambiente espacial do consulente e lia nas manchas viscosas formadas pelo mel e a luz que o transpassava, e ao vidro, de forma a perceber de alguma forma a causa do problema, quem o criara e a razão da criação.

E assim foi por longos sábados de tédio e desinteresse de minha parte, porque eu já tinha uns dez anos naquela época e parecia duvidar que aquele velho via de fato alguma coisa naquelas garrafas viscosas. A mim parecia que ele simplesmente abusava da boa vontade das pessoas para vender mel sem parecer um vendedor intrujão comum.

Ele depois mandava a pessoa retornar, pedia que fizesse orações com ele e em casa. Na verdade eu não acompanhava com detalhes as conversas que meus pais tinham com ele, e nem parecia haver por parte deles interesse em ter uma criança tomando parte naquela conversa.

De qualquer forma, depois de muitas sessões as coisas pareciam não mudar e logo deixamos de visitar o velho. Não sei se ele ficou doente e parou de atender consulentes ou se meus pais simplesmente cansaram de procurar uma ajuda sem resposta. O velho teria morrido algum tempo depois, se me recordo bem.

Os problemas continuaram.

Minha mãe deixou de ser católica e abraçou uma vertente cristã do tipo próximo à protestante. Deixou de lado a explicação mística para os problemas que atribuía as causas dessas ao esforço de pessoas ruins e passou a ver somente a mão de Satanás, sem rodeios, agindo contra nós, seres humanos vulneráveis. Meu pai se manteve católico até a sua morte por enfisema depois de 50 anos de fumo. 

Nunca mais vi um benzedor, embora tenha visto pessoas vendendo serviços de leitura de mãos, leitura da sorte, consultas inteligentes e vendendo pedras e cristais com os mais diversos poderes. Algumas delas trazem saúde e outras trazem dinheiro, segundo seus vendedores. E há os budas gordos que também são atratores de riqueza, mas não vi nada de efeito comprovado.

Há ainda plantas que se cuidadas em casa podem fazer isso ou aquilo, há as que secam diante de gente ruim e há a posição dos móveis, mas então já estamos entrando em outro terreno, mais espinhoso e sério, que trata de nosso atributo de sermos seres com mentes influenciáveis.

De resto, espero que você tenha a generosidade de contribuir conosco contando sua história sobre benzedores e benzedoras e seus métodos, assim como algum caso específico no qual algo realmente não ordinário tenha ocorrido, para que possamos entender melhor esse popular poder.

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