Caso 37 - Guerras

 Nasci em um vilarejo no Estado de São Paulo, Brasil, mas por questão de segurança, prefiro não informar o ano de meu nascimento e seu local exato. De qualquer forma, foi por volta dos anos 70 e vivi neste vilarejo por cerca de 15 anos. Meu pai era nascido no local e meu avô paterno havia ajudado a desbravar a região nas primeiras décadas do século, quando houve a construção de uma ferrovia, cujas muitas estações acabaram dando origem a vilarejos como este em que nasci.

Em uma época de poucos recursos, mas de mais segurança quando comparada com os dias de hoje, era comum que as crianças brincassem soltas pelas ruas, pelos campos, sítios e rios das redondezas. Eu, meus irmãos e meus amigos aventurávamos por todo canto, e explorávamos lugares muito interessantes para crianças e adolescentes. Um desses lugares, mas não o único, era um morro próximo, coberto de canaviais e laranjais, cuja estrada de acesso bifurcava no topo e se dividia em três ou quatro rumos. Entre uma dessas bifurcações, um bambuzal se destacava pela altura e comprimento quando comparado às plantações mais baixas ao redor. Esse bambuzal era conhecido como "A trincheira".

Eu já tinha ouvido falar desse bambuzal antes de tê-lo conhecido pessoalmente em minhas andanças pelo morro. Eu devia ter sete ou oito anos e ouvi os comentários sobre o bambuzal por meio de um grupo de adultos na porta de um armazém na rua comercial do vilarejo. Neste dia, falava-se sobre o fato de um dos donos das terras ao lado do bambuzal ter encontrado tempos atrás objetos que pertenceram a soldados da época da Revolução Constitucionalista de 1932, que envolveu a região de alguma maneira. O bambuzal fora plantado na vala da trincheira, crescera ao longo das décadas e ocultara os restos dos objetos deixados pelos soldados no fim dos conflitos em 32, e o sitiante que morava próximo do bambuzal, explorando-o na sua vala, juntamente com seus filhos, acabou encontrando botas, capacetes, restos de outros objetos, como talheres e marmitas, mas também projéteis, ou cápsulas vazias talvez.

Aquela história me fascinou. Guerras nos morros de minha terra natal? Como aquilo fora possível? Seria verdade que houvera ou ainda haveria objetos deixados por soldados numa antiga trincheira a pouco mais de dois ou três quilômetros de nossa casa tranquila e segura? Não sabia a resposta, mas passei a ter um grande interesse nos relatos das pessoas mais velhas, principalmente quando falavam da época da Revolução.

Meu avô paterno já morrera nesta época, mas seu irmão mais novo ainda vivia, morando em uma casinha simples em um sítio nas redondezas. Vou chamá-lo de Tio Z., embora não fosse um tio, mas um tio-avô. Nesta época ele deveria ter já seus 70 anos.

Tio Z. aparecia vez ou outra no vilarejo. Em uma dessas suas passagens, também na porta desse armazém, o mesmo armazém da história da trincheira, acabei perguntando a ele se era verdade que havia uma trincheira no meio do bambuzal no alto do morro. E ele respondeu que sim, que ali fora cavada uma trincheira por soldados na época da Revolução, e que não chegou a haver combates no local, porque a guerra acabou com as tropas mineiras invasoras parando a poucos quilômetros antes vindas de um outro vilarejo vizinho, mas que houve combates com mortes neste outro vilarejo e nas redondezas, assim como durante o período da guerra em si chegara a ver algumas vezes a passagem de aviões militares vindos de uma cidade próxima, que tinha um campo de aviação, como eram chamadas as pistas de pouso improvisadas na época.

Meu tio não contou muito mais que isso, mas a partir de então a imagem da guerra que tinha na cabeça ganhou um novo contorno. Eu imaginava aviões passando por cima do vilarejo vindos do sentido da cidade com o campo de aviação e depois sobrevoando o morro sobre a trincheira e depois fazendo uma grande volta em retorno à sua base, observando tudo, sem saber ao certo se eram aviões amigos ou inimigos, e sem saber ao certo se tinham armas ou eram somente aviões de observação, e ainda imaginando que o vilarejo fora poupado de combates por uma questão de dias, ou talvez horas. Aquela versão da história contada rapidamente pelo meu tio deixou-me anda mais curioso e fascinado.

Um dia eu e um grupo de moleques acabamos subindo o morro, por trás do qual o Sol se punha todas as tardes, e em cuja direção víamos a Lua ao escurecer enorme e gorda como um gigantesco balão, que levava gerações de meninos a correr morro acima com varas de bambu na sanha de "furar o Sol", ou "furar a Lua", sem nenhum sucesso, e a retornar frustrados, cansados e com suas varas inúteis nas mãos. Neste dia fomos ao topo do morro, que não é de fato alto, mas parecia ser para as crianças criadas no vilarejo e sem referência de outras alturas e outras distâncias. Era uma tarde quente e poeirenta, e chupamos canas no caminho pedregoso e acabamos avistando o bambuzal. Fomos até ele e de fato vi que a plantação de bambus se estendia em uma linha reta por cerca de cem metros, e as raízes ficavam em uma vala de cerca de um metro ou um pouco mais de profundidade, e parecia mesmo ter sido escavada por alguém, embora eu achasse que toda a história pudesse ser mentira e a vala pudesse ter sido escavada pela lâmina de algum trator das redondezas. Não imaginei naquele momento de ceticismo que os bambus eram velhos e que para terem vivido até terem a altura que tinham precisariam ter sido plantados há muitas décadas, em uma época que certamente não havia ainda os tratores com lâminas que eu conhecia e que eram capazes de abrir valas daquele tipo facilmente. O fundo da vala, para minha decepção, estava todo coberto por folhas mortas de bambu. Era uma cobertura grossa, fofa e úmida, e não era fácil chegar ao solo firme. Sequer pensei em procurar o que quer que fosse que pudesse estar escondido debaixo daquelas folhas. Imaginara, em minha inocência, que encontraria bambus plantados em um chão limpo, e que de distância em distância naquela vala eu encontraria, meio enterrados, capacetes e botas encardidas e, vez por outra, punhados de balas de fuzis e metralhadoras esparramados ao acaso. Mas aparentemente somente eu tinha interesse naquela vala, e a molecada parecia saber da história do bambuzal, mas ninguém ali se interessou em procurar nada e em poucos minutos deixávamos o local, rumo a outros locais mais interessantes para o restante do grupo. Fiquei com a sensação de frescor e umidade que emanava daquela vala escura, que suavizou por alguns minutos o calor daquela tarde. Pensei muito rapidamente, quase inconscientemente, que ali talvez, apenas talvez, também poderia esconder ossos de soldados mortos, mas não achei muito provável, porque meu tio dissera que ali não houve combates, mas ainda assim não tomei a ideia como impossível, e essa ideia me fez sentir um certo receio do local. Afinal, eu era um menino católico e como tal já tinha visitado um cemitério antes, mas a relação entre a trincheira e os cemitérios não ficou somente naquele fugidio momento de suspeita, naquela tarde de verão no alto do morro.

Mas, apesar da simplicidade daquela época, não vivíamos no vazio do mundo, sem informações ou isolados. Éramos parte de um mundo que se desenrolava de maneira intensa e assustadora, embora que longe do nosso vilarejo pacato. Esse mundo maior e mais agitado nos era acessível pela televisão, que começava a entrar nas residências dos moradores locais. E com elas, as televisões, vinham as notícias do mundo. As guerras, fossem elas em Beirute, no Afeganistão, em El Salvador, no Irã, ou outro local qualquer. Recordo-me que já não havia notícias de guerra no Vietnã. Essa guerra já havia terminado quando meu pai comprou nossa primeira televisão e eu sequer ouvira falar dela, mas nos noticiários era certo ouvir falar em Khomeini, o Aiatolá, no Irã, em atentados e confrontos em Beirute, no Líbano, em conflitos diversos na América Central, em Sendero Luminoso e a invasão do Afeganistão. Era então o fim da década de 70. Eu via as notícias internacionais e o mundo parecia ser um local complexo e confuso, conturbado e perigoso. E de fato era. As notícias eram comentadas mais aprofundadamente por Paulo Francis, com sua fala lenta e agonizante, e me recordo claramente da maneira como ele pronunciava o nome de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, e embora seus comentários não fossem completamente compreensíveis para mim, era certo que o mundo tinha um problema maior que as guerras em andamento, porque ele se preocupava mais com as relações de poder entre esses dois personagens políticos do que com qualquer outro assunto. Citava o Papa, ou a sucessão de papas que se deu naquela época, e citava Lech Walesa, mas citava também líderes soviéticos, e a sucessão deles também, que se deu naquela época, mas era claro que havia um problema maior que as guerras declaradas. Era a Guerra Fria, com seus mísseis nucleares e ameaças constantes. Assim, não éramos de todo alheios aos acontecimentos do mundo, e não era incomum ver na televisão cenas de tanques de guerra destruídos, ou em movimento, ou soldados correndo em ruas de cidades destruídas, ou filas de corpos encobertos por lençóis em meio a matas fechadas em algum lugar qualquer do violento mundo daquela época.

Ainda assim era tudo muito remoto, embora assustador. Era remoto a ponto de não haver relação com a guerra real, a da revolução. Eram dois mundos distintos, dois tipos de guerras distintos. A guerra das trincheiras e a guerra das bombas nucleares. Como ocorriam? Por que ocorriam? Como se desenrolavam? Como acabavam? Não sabia, mas as guerras rondavam a minha jovem vida naquele vilarejo remoto, e portanto eu não estava livre de suas notícias, fossem elas pela televisão, fossem pelas histórias contadas pelas pessoas locais, embora que fossem certamente tipos de guerras diferentes.

Não houve como não me interessar pelas guerras desde então.

Mas, como elas se dão? Por que começam? O que está em jogo no fim das contas?

Essas perguntas não são simples e sempre que vemos a mídia dizendo que o motivo é A, deveríamos saber que o motivo não é de fato A, mas B, C ou D.

Esse contexto de mentiras, narrativas e desinformação não deixa de ser fascinante.

Não que seja este o objetivo deste blog, falar sobre guerras, mas há coisas nas guerras, quentes ou frias, que precisam ser entendidas e colocadas sob observação.

Há coisas que ocorrem nas guerras que estão quase além da nossa compreensão comum.

Essas coisas precisam ser entendidas e contadas, mesmo que pareçam apenas teorias da conspiração.

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