Caso 34 - O tiro

Embora a morte seja um fato inevitável na vida das pessoas, e eu tenha tido contato com ela desde muito pequeno, é diferente quando ela se dá por meio de assassinato.

No vilarejo onde cresci, na década de 70, sempre morria alguém por doença, velhice ou mesmo acidente de trânsito, mas não havia registro de morte por assassinato. O local era calmo, o povo pacato e ordeiro e embora houvesse alguns bares e bêbados, brigas e discussões, nunca havia havido mais que isso. Nem mesmo narizes quebrados ou o envolvimento da polícia. Tudo se resolvia por ali sem maiores consequências.

Claro que nas cidades vizinhas as coisas eram piores. Em uma época em que muita gente se movia pelo país afora em decorrência de êxodo rural, crises econômicas, secas desastrosas e corridas por ouro e oportunidades nas fronteiras das florestas e novas regiões, era comum que alguns bairros mais pobres das cidades vizinhas recebessem pessoas pobres, e dentre elas, algumas violentas e perigosas. Era uma época efervescente em termos sociais.

Havia nesse lugares os famosos salões de baile, os forrós, as discotecas e outros meios de entretenimento que aglomeravam todo tipo de gente, de pobres a ricos. Os modismos culturais e musicais eram tão intensos quanto o foram na década anterior e o seriam nas décadas posteriores, e a boca de sino, o brega, o sertanejo, o disco, o rock e outros estilos musicais conviviam com as danças e os revólveres, as facas e os murros nas bocas, socos nos estômagos e voadoras nas costas pelos motivos mais fúteis, de cigarros negados a paixões não correspondidas, por dívidas não pagas a ciúmes de prostitutas.

Tínhamos parte de nossos parentes morando nas cidades vizinhas. O dia era de meu aniversário. Eu completava meus sete anos. 

Houve um bolinho com velas feito pela minha mãe e a molecada da vizinhança compareceu. Todos comeram e beberam, brincaram e se divertiram. Fiquei emburrado porque alguma menina pegou um presente ou tampinha de garrafa com algum desenhinho interessante dentro, ou alguma tolice do tipo que leva uma criança de sete anos a ficar amuada no seu próprio dia de aniversário. Tranquei-me no quarto por alguns minutos e logo minha mãe veio saber o que estava havendo e tudo foi resolvido. Logo mais e a festa acabou e todos foram felizes para as suas casas.

Era o fim de uma noite de terça-feira. Um dia comum.

Mas então, por volta das onze horas, quase meia-noite, alguém da vizinhança veio bater na porta de casa. 

Nós não tínhamos telefone em casa. Pouca gente tinha. Talvez tenha sido uma das filhas da dona da merceariazinha que havia na rua de baixo, onde fazíamos nossas compras, que tenha vindo dar o recado. Havia telefone na mercearia e esse era um dos poucos canais de acesso para se comunicar eventos fora do normal. Afinal, ninguém iria incomodar a todo momento os moradores da mercearia com recados fúteis ou não urgentes. Não havia ainda orelhões públicos naquela época. Havia somente uma central telefônica que fora operada por uma telefonista, mas que já não mais funcionava. Mas, ainda que funcionasse, a central estaria fechada, porque era apenas um conjunto de fios em uma tabela de furos em um tablado vertical de madeira que ligava linhas locais entre si e era operado por uma senhora que trabalhava somente durante os horários normais de expediente e que, caso ainda estivesse trabalhando, não o estaria naquele horário.

A moça da mercearia bateu na porta, minha mãe atendeu e voltou assustada. Nós, meninos, já estávamos nas nossas camas.

Era, obviamente, uma notícia ruim.

Um tio, o irmão mais velho de minha mãe, fora assassinado.

Minha mãe nessa época tinha por volta de 34 anos. Era um dentre dez filhos de minha avó e meu avô maternos. Esse tio era o mais velho dentre todos. Tinha na época em torno de 45 anos. Havia sido casado, tinha 5 filhos jovens, mas agora era divorciado e vivia uma vida de loucura, embriagues e violência. 

Mas não era surpresa esse estilo de vida.

Meu avô materno fora alcoólatra. Meu pai também o era, embora em menor grau. Minha mãe tinha, além deste tio, dois outros irmãos. Os dois também eram alcoólatras. Essa era a natureza das coisas. Trabalhar pesado na roça, na obra, nos olarias, nas pescarias, onde fosse possível, e depois casar ou viver solteiro, mas sempre bebendo, fosse pinga, para os mais pobres, ou cerveja, vinho, conhaque, para os remediados, ou uísque para os mais abastados ou para os pobres em momentos raros de bonança ou sorte. 

E, sempre que possível, brigando, porque homem que era homem não podia levar desaforo para casa.

Nisso, meu tio tinha ido a um famoso salão de baile na cidade vizinha onde morava, um lugar conhecido pela violência e pelo perigo, onde prostitutas disputavam a atenção de bandidos, aventureiros e destemidos, e que invariavelmente acabavam provocando brigas, tiros, facadas e socos, e eventualmente mortes.

Meu tio brigara, discutira com alguém e levara um tiro. Não resistira e morrera. Essa era a notícia ruim.

A noite foi da alegria para a tristeza.

Dormimos assustados e na manhã seguinte fomos ao velório.

Meu tio falecido foi autopsiado. Eu não sabia o que significava aquilo. Nunca ouvira aquela palavra. Fomos direto para o cemitério. O corpo estava sendo velado lá. 

Chegando, um grupo de parentes já aguardava no local. Aos poucos soubemos que ele, o falecido, não estava sozinho. Estivera no local com seu irmão mais novo, também problemático e encrenqueiro. Discutiram com alguém por causa de uma mulher. Aparentemente essa mulher estava sendo assediada a tempos pelo tio mais novo, que frequentava também o lugar. Mas nesse dia parece que a assediada estava acompanhada. Houve alguma conversa áspera entre os dois tios e o acompanhante da moça. Esta preferiu ficar com o acompanhante e não gostou da discussão com os meus tios, principalmente com o mais velho, que ela sequer conhecia. Houve um bate-boca entre eles. Meus tios resolveram ir embora do lugar. Assim que eles andaram um quarteirão, o casal saiu atrás deles e a mulher sacou uma pequena arma, um revolver calibre .22, de uma bolsa que trazia na mão, e efetuou um único disparo na direção dos dois tios. Ela aparentemente os chamou antes de atirar, porque, segundo as conversas no cemitério naquela manhã triste, o tiro atingiu diretamente o coração do meu tio mais velho, e como a arma era de baixa potência, o projétil não chegou a sair do outro lado do peito. Ao menos não foi um tiro traiçoeiro dado pelas costas.

O tiro foi fatal.

O casal fugiu. Meu tio ferido caminhou um pouco até a calçada e sentou-se, ofegante e com sede. Seu irmão ao lado nada pode fazer. O tio ferido morreu em poucos minutos.

O caso obviamente levou à chamada da polícia, que também obviamente obedeceu os procedimentos legais, dentre os quais um que determinou a obrigatoriedade de realização da autópsia.

Que era uma autópsia?, quis saber de minha mãe.

Era a abertura do cadáver para verificar a causa da morte. Depois o corpo era fechado e nós não víamos o que ia por baixo do paletó do morto.

Aquilo me pareceu assustador.

Meu tio foi enterrado em um canto próximo ao um grande muro, que por sua vez era próximo a uma grande avenida, que ligava o centro da cidade à zona rural cheia de cana e poeira.

Eu vira aquele tio antes de morrer somente uma ou duas vezes. Recordo-me vagamente dele.

O tio que estava junto viveu ainda por muitos anos e nunca mais ouvi o assunto sendo tocado nas visitas que foram feitas a nossos parentes próximos ao tio morto.

Os filhos dele cresceram e se tornaram alcoólatras e violentos. Brigavam em festas, nos bares, nas ruas e em qualquer lugar. Eles andavam em grupo de três ou quatro e a vida deles se resumia a trabalhar duro na roça, na obra ou onde fosse possível, beber sem medida e sempre que possível brigar com toda a força e fúria possível. Era uma forma de vingança pelo pai morto. Eles não deixavam por menos e não me lembro e nunca ouvi falar de alguém que tenha sido morto por uma surra deles, mas lembro de alguém que quase morreu por ter levado uma tijolada na cabeça em uma madrugada de um fim de semana qualquer na beira de uma estrada por ter feito uma brincadeira errada na hora errada com as pessoas erradas ao passar de carro por eles após uma festa qualquer daquelas que sempre acabam mal.

O tempo passou.

Nós continuamos vivendo no vilarejo.

Éramos pobres. Tínhamos pouco dinheiro para comprar de tudo. Roupas eram coisas raras e caras. Sempre que possível, uma roupa era usada pelo filho mais velho até não caber mais. Depois era passada para o filho seguinte, até que acabasse puída e virasse trapo. 

Assim, vez por outra os parentes de minha mãe, que também tinham filhos jovens, vinham nos visitar e traziam roupas que eles não mais usavam. Eles, os parentes, moravam em cidades maiores, tinham empregos melhores, ganhavam mais que meus pais e podiam comprar roupas em lojas mais variadas e com diferentes preços e modelos. A vida não era tão ruim assim para eles quando o era para nós, embora ninguém fosse rico. Mas as trouxas de roupas que recebíamos eram vitais. 

Meu pai nunca usava nada do que nos era dado. Não sei porquê. Vaidade, desprezo, ou porque priorizava as crianças, ou porque não gostava dos modelos, ou ainda porque o que não era para as crianças era usado para se fazer cobertores para se enfrentar os invernos terríveis daquela década, porque nossa casa não tinha forro, nem aquecimento algum, e as madrugadas eram aquecidas apenas pelas cobertas, que também custavam caro, mas eram improvisadas pela minha mãe, que as montava com panos de sacos tingidos de marrom para esconder a sujeira e enchidos com roupas ganhadas, mas não usáveis, porque grandes, ou feias, ou inadequadas, que eram costuradas com fios grossos de barbantes e cobertas pelos sacos marrons.

Por anos usamos essas cobertas.

Quando eu tinha meus quinze, dezesseis anos, nos mudamos para a cidade onde meu tio vivera e morrera. 

Era também um período de pobreza e tristeza, e muito frio e chuva.

Em dado momento, uma das cobertas rasgou, e eu fiquei curioso com o que havia dentro. 

Com a autorização de minha mãe, acabei de abri-la toda e comecei a soltar as peças de roupas costuradas com os barbantes grossos. Vi roupas inúteis, mas vi três peças que me chamaram a atenção. Nessa época eu já era um rapazinho com um pouco da vaidade dos adolescentes que gostam de andar mais bem vestidos. Eu vi uma jaqueta verde de náilon com zíper, meio desbotada e descorada, mas ainda bastante boa e jovial para um adolescente. Vi também uma jaqueta do tipo jeans verde oliva, do tipo militar, e como eu gostava de tudo o que era relacionado ao mundo militar, acabei achando ela adequada para o frio do lugar. 

E por último eu vi uma camisa tipo de malha polo, do tamanho adequado para meu corpo, embora de uma cor entre o laranja e o vermelho muito berrante para meu gosto e o gosto da rapaziada da minha da minha idade, mas bastante boa e nova.

Minha mãe olhou as roupas e consentiu que eu as usasse, mas antes tomou a camisa polo vermelha e a olhou com um olhar triste e melancólico. Ela tomou a camisa na mão e passou o dedo pelo bolso do lado esquerdo da frente. E então ela me disse que talvez eu não gostasse de usá-la. Eu retruquei dizendo que a cor era meio forte. Ela apontou um furinho do tipo que ocorre quando queimamos uma peça de roupa com a ponta de um cigarro. Meu pai vivia queimando roupas desse jeito.

Eu disse que era apenas um furinho de cigarro e que aquilo não era problema, porque o resto da camisa estava perfeito.

Então ela disse que aquele furinho não era de cigarro.

Era a camisa que meu tio usava quando levou o tiro no coração. Aquele furo não fora provocado pela ponta de um cigarro, mas por um projétil, uma bala, que entrou, mas não saiu. Não havia um furinho do lado de trás da camisa.

Eu fiquei meio constrangido com a informação.

Ela disse que sabia desde muitos anos atrás que a camisa fora retirada do corpo de meu tio pelos médicos que realizaram a autópsia, fora depois entregue aos parentes e ninguém teve coragem de usá-la. Ela foi inclusa em uma das trouxas de roupas usadas que ganhamos de nossos parentes e minha mãe foi informada disso, mas preferiu escondê-la dentro de uma das cobertas improvisadas, porque meu pai também se recusou a usá-la.

Mas agora era diferente. 

Eu era um adolescente. Não tinha nem medo nem preconceito de usar uma camisa que era ainda muito útil e relativamente bonita, embora ela tenha sido usada por um morto pela última vez.

Entendi que era uma questão de respeito para com todos usar aquela camisa.

Eu precisava dela. O morto e a dor de sua perda já estavam superados. E ele, se estivesse vivo, certamente ficaria feliz em saber que sua camisa estava sendo útil e usada por um de seus parentes mais necessitados. E o furinho, bem, jamais alguém suspeitaria que era decorrente de um tiro e não de uma ponta de cigarro. Não havia manchas de sangue, ou, se houvera, foram perfeitamente removidas. Esse tipo de arma, de baixo calibre, não costuma criar um ferimento que provoque muito sangue externo. Pelo contrário. É um tipo de arma tido como perigoso exatamente porque abre um furo muito pequeno sem sangramento e que mata seu alvo por hemorragia interna sem grande chance de estancamento, com uma só via de entrada, porque é fraca a força do projétil, o que dificulta ainda mais a chance de socorro médico.

Não, eu não via problema em usar aquela camisa.

E usei-a por muitos anos. 

Meus irmãos não se interessaram em compartilhá-la comigo. Eles não gostaram da cor, e embora não se sentissem amedrontados ou avessos a ela pelo seu estigma de ser usada na hora da morte de uma pessoa, preferiam que fosse usada somente por mim.

Usei-a por dois ou três anos. Depois ela ficou desbotada, flácida e feia, e minha mãe a usou como pano de chão. E depois, seus restos seguiram o destino de todos os trapos. Foi para o lixo, sem nenhuma cerimônia ou dó. Mas ela, a camisa, foi usada com a dignidade com que deve e são usadas todas as camisas, com ou sem o estigma da morte.

Não sei o que pensava minha mãe quando me via com aquela camisa. Lembrar-se-ia do irmão morto?

Creio que sim. Creio que, ou quero crer que, ou, melhor, gostaria muito que, de alguma forma ela visse aquela camisa como uma espécie de continuação da existência de seu irmão vivendo em forma de cor berrante em meu corpo.

Nenhuma morte, admito, pode ser consolada dessa maneira, ainda mais uma decorrente de assassinato por motivo qualquer que seja ele. Mas é uma forma de consolo saber que algo que perdura a morte, um objeto, uma roupa, pode subsistir ao morto e, sob o ângulo correto, pode dar um novo significado à sua memória, ao seu legado.

Alguém tirou uma vida por meio de um tiro. E eu, de alguma forma, me beneficiei do legado indesejado do morto. Preferiria passar frio e andar de peito nu se pudesse dessa forma ter poupado a vida de meu tio, mas como isso não é possível, agradeço a oportunidade de me servir de sua camisa furada para me vestir, me cobrir como se cobrem todos.

Eu estufava o peito com o bolso furado de pólvora e pensava comigo mesmo: ele morreu, mas eu estou aqui, vivo e de peito estufado.

Eu sobrevivi ao estigma.

Há lendas sobre carros que matam, casas que matam. Nunca ouvi sobre camisas que matam. A que usei não foi uma delas.

Creio que o que mata é o mal. E ele se traveste de carne e osso, não de pano inerte e inocente.

É quanto ao cano de ferro nas mãos e mentes erradas que devemos ter cuidado.

Melhor: é quanto às mentes erradas somente, porque o cano de ferro é tão inerte quando uma camisa quando longe das mãos controladas pelas mentes erradas. Canos são como camisas.

E camisas são apenas camisas.

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