Caso 26 - Cafuncho

Era uma tarde tranquila em casa quando ouvimos alguém batendo palmas na porta da frente, na rua. Aquilo não era muito raro, mas era sempre uma curiosidade. Quem seria? Afinal, vivíamos os anos 70 em um vilarejo de ruas empoeiradas com pouca gente, muita simplicidade e poucas novidades.
Meu pai quase nunca estava em casa nessas horas modorrentas da tarde. Era um dia quente e poeirento. Minha mãe foi até a frente da casa, junto à cerca velha caindo aos pedaços ao lado do portão entortado e mal feito.
Era um homem de aparência incomum. Sujo, vestindo andrajos de tecido grosseiro e encardido, um chapéu tosco e amarrotado na cabeça, barba com meses por fazer, beirando cinquenta anos, ele humildemente informou que vinha de sítios da região e ia sem rumo de melhores paragens em busca de trabalho, mas que não era da região, não conhecia ninguém na vila, não tinha nenhum dinheiro e vinha caminhando por muitos dias e longas horas debaixo do sol sem comida ou água. Não era ladrão, não era criminoso. Era apenas um trabalhador pobre e estava com fome. Ele pediu um prato de comida.
Minha mãe condoeu-se da situação e pediu um minuto ao homem, foi até a cozinha, encheu um prato daquilo que tínhamos almoçado algumas horas antes e fritou dois ovos sobre o arroz, juntou um copo d'água e deu de comer a ele.
Ele comeu em silêncio sentado na calçada de terra mesmo, bebeu a água, agradeceu e seguiu seu caminho. Nunca mais o vimos.
Alguns anos depois, em uma outra casa, mas na mesma vila, agora asfaltada, outra cena parecida aconteceu. Bateram palma, era um andarilho, minha mãe fez um prato de comida e o homem comeu e seguiu adiante.
Algum tempo depois meu pai resolveu ajudar um pobre homem morador da vila, velho e doente, com os pés inchados e cheios de feridas devido ao álcool e doenças diversas. Esse era outro homem simples e não tinha familiares que o ajudassem. Em troca de um servicinho em uma horta no quintal, ele recebia almoço e jantar em casa por um tempo, mas como não se ajudava e não largava o álcool, meu pai decidiu que não era possível continuar ajudando-o. Ele não era um andarilho, afinal, e tinha onde morar ao menos.
Naquele vilarejo, não era o único homem pobre e em dificuldades. Além dele havia ao menos três andarilhos bastante conhecidos de todos. Um deles era conhecido como Vilácio, um senhor feio e grosseiro que vivia bêbado pelas redondezas, beirando os 60 anos de idade. Resmungava e xingava todos que o perturbavam. As mães da molecada da época viviam ameaçando as crianças mais traquinas que não era para saírem para longe de casa porque o Vilácio as pegaria e as levaria embora dentro de um saco que ele sempre trazia pendurado no ombro pela ponta de uma vara. As crianças mais novas tinham medo e respeito por Vilácio, mas depois que iam crescendo, iam perdendo o medo. Mas então depois de um certo tempo não mais o vimos. Não sei que destino teve Vilácio.
Além dele, havia Zé Pinguinha, um homem com a barba espetada, rabugento, cachaceiro, voz grossa e engrolada, com calças frouxas e imundas e beirando também seus 60 anos. Zé era mais constante nas suas andanças pela vila e por um tempo ele passou a dormir em uma escolinha pública abandonada. Um dia eu e alguns meninos resolvemos explorar a escolinha velha, cujos muros haviam a muito ruído. Então vimos uns andrajos embolados em forma de uma cama no chão e entendemos que só poderia ser as coisas do pobre Zé Pinguinha. Ele não estava na cama. Provavelmente estaria fazendo algum serviço temporário em troco de comida. Ninguém lhe daria muito dinheiro. Se dessem, ele morreria de tanto beber. E quando estava bêbado, era importunado pela molecada e pelos adultos. Ele resmungava e invariavelmente xingava também todo mundo de "paiaço" com a sua voz grossa e inconfundível.
Zé tinha ainda um outro companheiro de sofrimentos.
Era Cafuncho.
Cafuncho era um negro com lindos dentes brancos. Negro de um tom de pele puro e escuro, tinha lá seus 40 anos e também era alcoólatra. Era forte e prestava serviços na vizinhança com mais frequência que os outros dois desafortunados da vila porque entendia alguma coisa sobre cavalos e bois, e era levado de tempos em tempos para algum sítio da região, mas sempre voltava para gastar nos bares o pouco dinheiro ganho com suas habilidades. Cafuncho e Zé Pinguinha eram pessoas que eram tranquilas quando sóbrios. Nesses momentos, iam aos bares da rua comercial principal da vila e quando não estavam ainda muito altos divertiam os demais cidadãos da vila.
Cafuncho era famoso por ser capaz de quebrar com os dentes fortes os seixos das ruas poeirentas. Mas somente o fazia em troca de uma dose de pinga.
E quando os dois, Zé Pinguinha e Cafuncho, se encontravam nos finais de tarde em algum dos bares, o que ocorria geralmente aos finais de semana, eles eram incentivados por meios de doses de pinga gratuitas a se embrenharem em um maravilhoso duelo de repentistas, com cada um inventando de improviso frases desafiando ou humilhando o oponente, ou então engrandecendo-se e vangloriando-se, para o deleite da audiência.
Esses personagens foram por mim esquecidos por longo tempo, porque mudei-me do vilarejo e perdi contato com todos. Não mais ouvi falar deles, nem havia porquê me interessar por eles, mas alguns anos depois, quando eu já era um jovem adulto, em algum lugar que não me recordo, em um momento que não sou capaz de me recordar, por meio de um velho amigo do vilarejo, que encontrei também não sei onde, ouvi uma história que me pareceu bastante sinistra e curiosa.
Minha família se mudara do vilarejo no meio da década de 80. Passamos a viver em uma cidade maior não muito longe dali, mas passamos a viver de uma maneira muito diferente daquela que vivíamos no vilarejo. Com muito trabalho e sem tempo para nada, esqueci-me de quase tudo da velha vida pacata das décadas anteriores. Na cidade havia quase tudo que há em cidades modernas: cinemas, bibliotecas, hospitais, bancas de jornais, rodoviárias, rodovias, universidades e gente, muita gente, a absoluta maioria desconhecida, ao contrário da gente dos vilarejos pacatos.
A história sinistra e curiosa que ouvi fora contada ocasionalmente por um velho amigo, um daqueles que fora um menino que conhecera os pobres diabos do vilarejo. Adulto, ele, em meio a um assunto qualquer, falava-me das coisas que aconteceram no vilarejo nos anos que se seguiram depois de nossa partida. Ele, o amigo que ficara e crescera, sabia de tudo sobre todos, como é comum nos vilarejos. Fulano se casara, beltrano fora estudar fora, ciclano parara de estudar e trabalhava nisso ou naquilo e, entremeio a tanta informação do povo do vilarejo, ele falou desinteressadamente sobre Cafuncho.
Cafuncho morrera em decorrência do abuso do álcool. Mais velho, talvez já com os seus cinquenta anos, desgastado pelas doenças, acabou não resistindo às agruras da vida. Segundo os boatos, acabara tendo o corpo morto sendo entregue para uma faculdade da cidade vizinha onde agora eu morava.
Ora, a faculdade de Biologia da cidade em que eu morava.
Essa faculdade eu conhecia.
Poucos anos antes dessa história eu estudava. Fazia meu segundo grau em uma escola pública tradicional. E jamais esquecerei do dia em que visitamos a faculdade.
Em algum dia qualquer de um mês de março, abril ou maio do ano em que eu cursava o terceiro ano, eu havia faltado às aulas por um motivo qualquer, por uma gripe talvez. Eu raramente faltava às aulas sem motivo, e raramente ficava doente.
Naquele dia, sem que eu ficasse sabendo, a nossa professora de Biologia havia marcado um evento para a turma, uma visita à faculdade de Biologia. Era uma forma de nos ajudar a escolher nossas futuras profissões, e era um evento raro também, uma aula externa. Como eu não estivesse na sala, não tomei conhecimento da visita. Como ninguém se deu conta de minha falta, porque eu não tinha de fato amigos na sala, mas somente colegas distantes, ninguém me avisou da visita.
No dia combinado eu compareci à aula de Biologia com a expectativa neutra de quem assistiria uma aula normal em classe, mas me surpreendi positivamente quando percebi que iríamos a um evento externo. Eu gostei da ideia. Afinal, nunca tivera oportunidade de ir a uma faculdade exclusivamente para conhecer um de seus cursos como um aluno em potencial. Já estivera em faculdades antes, mas por motivos diversos. Um tratamento de saúde de familiares, uma prova de algum certame ou uma ou outra razão secundária. Mas ter faltado à aula acabou se revelando um grande problema.
A faculdade de Biologia evidentemente se preparou previamente para receber seus visitantes. E essa preparação acabou me deixando em estado de quase terror, porque eu não imaginava o que me aguardava, embora que certamente a professora tivesse tido o cuidado de alertar os alunos a respeito do que veriam na faculdade quando marcara com a turma a visita que agora fazíamos. Ora, se eu soubesse com antecedência o que me aguardava não seria poupado da experiência em si, mas estaria infinitamente mais preparado do ponto de vista psicológico, mas não foi esse o caso. Paguei caro pela falta de preparação prévia.
Um ônibus nos levou da escola até a faculdade. Assim que descemos e fomos entrando nos corredores e salas do lugar, fui sentindo o cheiro pungente de formol. Depois, baldes e mais baldes para serem vistoriados por nós sob a orientação de professores e alunos em passos instrutivos guiados de um local a outro. Em um balde, um cérebro humano coberto de formol conservava-se diante de minha vista incrédula. Em outro, vísceras, em outro um rosto serrado o meio. Em outro, mãos, e depois pulmões e rins e assim por diante. Em uma sala um grande retângulo, um sarcófago de concreto e formol, guardava pilhas de braços, de pernas, de troncos. Em outra sala, mais sarcófagos com mais partes humanas.
Ao final, eu sentia a cabeça confusa e um desejo ardente de sair logo dali, de nunca mais pisar naquele lugar, de nunca mais assistir a uma aula de Biologia na vida. Eu sentia ódio daquela maldita professora. Eu jamais, jamais me envolveria com aquela disciplina, ou com qualquer coisa que se relacionasse com saúde, com corpos, com doenças, com pesquisa biológica, com hospitais ou mesmo com o interesse com o meu próprio corpo. Aquilo fora demais para mim. Voltei para casa sem fome e desgostoso com a fragilidade, fugacidade e insignificância da vida e de nossos corpos.
Mas, e quanto a Cafuncho?
Ele provavelmente fora serrado em pedaços e teve seu corpo estudado por dezenas de alunos curiosos nos anos próximos àquele de minha visita. Mas não me recordo de tê-lo visto, mesmo sem saber que ele poderia estar ali. Tudo me levaria a crer que ele morrera depois, alguns anos depois daquela triste visita.
Mas por que o corpo de Cafuncho teve aquele destino?
Era um destino nobre. Na porta de uma das salas de necrópsia daquela faculdade havia uma placa de metal com alguns dizeres de algum médico ou estudioso famoso exaltando a nobreza daqueles que tiveram seus corpos dados como objeto de estudo de dissecação para o avanço da Medicina, enaltecendo a importância daquela doação involuntária, mas necessária. Era uma frase de uma tristeza infinita, e só posso concordar com ela, não há dúvida sobre isso.
Mas e quanto aos demais corpos? De quem eram? Quem foram seus donos? Como acabaram morrendo? Onde viveram?
Sabemos que Cafunho acabou tendo seu corpo usado em uma faculdade porque ele vivera em um lugar muito pequeno e todos sabiam de sua existência, mas e quanto ao resto?
Que fim teve o andarilho, ou andante, como falávamos na época, que primeiro bateu palmas em nossa porta em busca de um prato de comida?
Não sabemos. Esse homem não tinha raízes. 
Os andarilhos fixos do vilarejo tiveram sorte de serem conhecidos e tiveram, suponho, ou ao menos Cafuncho teve, um fim conhecido e, em certo sentido, digno. Mas e quanto aos milhares, milhões de pessoas desafortunadas que rondam o mundo e que não possuem a sorte de serem conhecidas, de não serem parte de uma comunidade? Porque mesmo o mais pobre dos cidadãos merece e geralmente recebe alguma atenção da comunidade onde vive, mas somente se tiver alguma constância em suas andanças físicas, quer dizer, desde que estável no seu espaço físico, ele pode ser acompanhado e, por que não, de certo modo protegido, não dele mesmo e nem da dureza da vida que leva, mas ao menos das intempéries mais graves e da violência gratuita que vez ou outra pode lhe ser direcionada por uma ou outra pessoa mais exaltada ou simplesmente maldosa, ou ainda que se defenda de um não tão raro ataque físico recebido ou tentado por alguém mais bêbado, ou ensandecido que o normal. Mas e quanto aos andarilhos que realmente andam e não possuem uma área fixa na qual se estabelece e passa a receber atenção da comunidade? Que fim eles levam?
Afinal, como saber se um cidadão desses simplesmente pegou suas coisas e foi para outro bairro, outra cidade ou outro estado? Ninguém saberá, nem se dará ao trabalho de saber.
E então temos os cidadãos normais.
Eles também somem.
Eles também chegam atrasados em casa depois de um passeio, ou depois da aula. Eles também vão pescar e ficam atolados em uma estradinha mais problemática.
Hoje temos os celulares e quase sempre tudo é mera questão de comunicação, mas ainda assim tem o desaparecimento real.
Pessoas desaparecem.
E elas desaparecem aos milhões.
Para onde vão todas elas?
Evidentemente que esse é um problema terrivelmente sério e assustador.
Certo. Acidentes acontecem. O mundo é um lugar perigoso e pessoas se afogam, são assassinadas por muitos motivos. Pessoas surtam e resolvem ir comprar cigarro e nunca mais retornam. Mudam-se de cidade, de vida, de identidade, de alma. Mas ainda assim, é muita gente sumindo.
O quão bem sabemos sobre esses milhões de casos?
Cafuncho acabou sendo útil de alguma forma. O quão útil pode ser um corpo humano sadio, embora sua utilidade só possa ser usufruída se esse corpo estiver morto? Como saber quantas pessoas entre as milhões desaparecidas ainda estão vivas ou mortas? Se morreram, como se deram as suas mortes? E o que foi feito de seus corpos? Afinal, é inegável que cadáveres possuem valor inestimável.
Não estou afirmando que há pessoas dispostas a matar para obter cadáveres para algum uso útil, mas não há nada, absolutamente nada que impeça essa hipótese.
O quão seguros estamos, afinal?
Como saber se estamos ou não sendo vigiados, seguidos, estudados por quem quer que seja por motivos que não fazemos a menor ideia?
Esse assunto é assustador, mas ele é real. Não há como fugir dele. Não há absolutamente maneira de fazer vista grossa para esse drama. Somos cerca de 7,5 bilhões. Não há absolutamente maneira de garantir que pessoas estão desaparecendo por motivos que hoje podemos considerar como criminosos e aberrantes. 
Pense nisso.
Esse blog tratará o desaparecimento, e mesmo o aparecimento, de pessoas como um assunto sério e grave.
Desaparecimento, sim, mas, aparecimento?
Mas, dados os 7,5 bilhões, e dado que não se vive mais em vilarejos, como saber quem é o seu vizinho que acabou de mudar-se no apartamento em frente ao seu? Ele diz que é isso e aquilo, mas como você pode ter essa certeza? E você precisaria ter essa certeza?
Se você acha que não precisa se preocupar com isso, é melhor repensar sua visão de mundo sobre esse tema.
Trataremos para que esses problemas, o do aparecimento e desaparecimento de pessoas, sejam melhor entendidos. E para tanto, não faltará casos de um e de outro tipos.
Cafuncho descansa em paz.
Somos gratos a ele, mas isso ainda é muito pouco.
Há milhões de casos merecendo a nossa atenção.
Reconhecer o problema é um primeiro passo. Mas não há somente um problema e sim dois. De onde vem as pessoas, e, depois, para onde elas vão?
A banalidade dessas duas perguntas esconde um oceano de dúvidas e mistério.
Pense nisso.

Comentários

Postagens mais visitadas