Caso 41 - Peçonha

Peçonha

A natureza nos surpreende não somente por meio de terremotos, furacões, tsunamis, tornados e fenômenos climáticos. Ela nos surpreende, ao menos a mim me surpreende, também quanto a seus aspetos biológicos. A vida, em suas variadíssimas formas, está longe de ser bem compreendida ainda. Claro que a Biologia é uma ciência bastante evoluída, mas a complexidade da vida e a imensidão do planeta sempre produz surpresas.
Eu era um menino ainda, com meus dez ou onze anos quando soube de um caso que muito me impressionou.
Morando em um vilarejo cercado por dois riachos e um ribeirão, estava sempre em contato com matas, enchentes e a vida que permeia esses ambientes. Víamos insetos em nuvens, sapos, cobras e peixes com alguma frequência, embora morássemos em uma área urbana, pequena, é verdade, mas definitivamente urbana.
Os sapos seguem um fluxo de procriação interessante. Sempre víamos, especialmente em águas mais calmas e rasas, os milhares de girinos se movimentando após nascidos. Depois, as ruas do vilarejo eram invadidas por sapos já formados, que vinham atraídos pela luz dos postes de iluminação pública e das casas, que por sua vez antes atraíam insetos noturnos, alimentos valiosos para os sapos. 
Claro, nós, garotos, não víamos essa invasão de sapos como um problema, mas como uma diversão. Naquela época a consciência ecológica não era um fato dado nos sistemas de educação infantil. Sabíamos que sapos eram seres vivos, mas não entendíamos sua importância dentro de uma cadeia alimentar, e achávamos que eles eram os alvos ideais para serem caçados das mais violentas maneiras. 
Caçar sapos era então uma dessas diversões ocasionais. Mas sempre éramos alertados para que tomássemos cuidado com eles, porque eles, de alguma forma, poderiam urinar em nossos olhos.
Sapos urinando nos olhos das pessoas? Que significa isso, afinal? Era só uma forma de nossos pais colocarem medo nas crianças para que não saíssem caçando sapos pelas ruas noite afora, ou havia alguma realidade nisso?
Eu aprendi que não era uma urina propriamente dita, mas uma glândula que os sapos possuem sobre a cabeça, duas glândulas, aliás, uma de cada lado, localizadas atrás dos olhos, e que os sapos armazenavam algum tipo de líquido venenoso em caso de serem pisados ou ameaçados. Mas nunca havia visto sapo algum fazendo uso desse mecanismo de defesa em todos esses anos de caça aos sapos. Se é que eles poderiam se defender, por que não se defendiam contra as crianças que os atacavam nas ruas tentando matá-los?
Não sei. Só sei que um dia, à noite, um dia de semana qualquer, por volta das nove horas da noite, eu cheguei da rua depois de alguma saída para brincar, jogar bola na quadra local ou algo assim e percebi algum burburinho diferente em casa.
Meu pai sempre saía à noite. Dificilmente chegava cedo em casa. Mas às vezes isso acontecia. Esse dia foi um desses em que ele estava em casa, mas de alguma forma, ele estava na cama, e minha mãe parecia preocupada e aflita.
O que houve?
Um sapo.
Meu pai voltara da rua e entrara no quintal de casa, cuja frente possuía um pequeno jardim com rosas e algum mato. Entre as duas bandas do jardim havia uma passagem de tijolos crus desgastados pelo tempo e uso. Naquela época tudo era mais escuro, porque as lâmpadas da iluminação das ruas eram de uma tecnologia mais simples, de filamentos que imitiam uma luz fraca e alaranjada. E não havia muita luz nas casas também. Uma lâmpada fraca na área da frente era a regra, mas não era luz bastante para clarear o pequeno jardim. Assim, meu pai entrou em casa e acabou tropeçando ou pisando em um sapo que havia se adentrado em busca de insetos. 
Isso não era comum. Nossa casa ficava bem no centro geográfico do vilarejo. Sapos tinham que percorrer algumas ruas antes de chegar até ela. Mas esse sapo conseguiu sair de algum riacho e se esforçou bastante até ser pisado pelo meu pai na penumbra do jardim.
E o que o sapo fez depois de ser pisado?
Ele espirrou um líquido que acertou os olhos do meu pai de forma que agora ele estava deitado com minha mãe passando como compressa um pano com água quente para tentar aliviar a sensação de ardência que meu pai sentia. Ele tinha os olhos vermelhos e lacrimejantes. Em casa o sentimento era de medo de que ele viesse a perder a visão pelo veneno do sapo. E eu, criança, sabia agora, mais que nunca, que os sapos eram mesmo perigosos e que a conversa do esguicho não era mentira. Afinal, meu pai não estava mentindo, com os olhos avermelhados e doloridos.
Mas os sapos eram mesmo o único problema?
Não.
Eles sequer eram os maiores problemas.
É que além deles haviam as cobras.
Devo admitir que elas eram mais assustadoras, muito mais assustadoras que os sapos.
Mas as cobras chegavam a existir naquele ambiente? Elas eram vistas nas casas ou ruas?
Raramente, mas elas habitavam as beiras dos rios, e nós, crianças, e os adultos, invadíamos essas áreas, de forma que vez ou outra nos deparávamos com cobras aqui e ali, para nosso desespero e frustração.
Afinal, nós não tínhamos piscinas no vilarejo. Os riachos e o ribeirão eram as nossas piscinas naturais e os verões eram animados pelas idas quase diárias aos poços mais adequados para mergulho e natação. Isso era assim desde o início dos tempos naquele vilarejo, e, creio, em qualquer lugar onde haja rios e água em geral.
Meu pai começou a nos levar, a mim e a meus dois irmãos, desde pequenos nos riachos próximos. Meu pai nascera e crescera naquela vilarejo. Ele provavelmente nadara naqueles lugares quando criança e jovem, embora quase nunca quando adulto. E minha mãe nascera em uma família cujos homens eram exímios pescadores. Meu avô e vários de meus tios e primos maternos eram pescadores, teciam redes e frequentavam os rios da região costumeiramente. Para meus pais era natural que nós, crianças, aprendêssemos a nadar o mais cedo possível nos rios locais para nossa diversão e, mais importante, para a nossa própria segurança, porque saber nadar é um recurso que pode salvar uma vida em caso de necessidade. Então, desde meus seis anos que vinha frequentando beiradas de rios onde as cobras também viviam, e certamente que vi uma dúzia delas em diversas ocasiões. Lembro-me de um dia em que brincava em um pequeno banco de areia ao lado de uma pequena cachoeira em um trecho de um riacho que era muito raso e seguro, e que aparentemente não havia perigo algum. E cavando a areia, dei com um buraco onde um par de olhos reptilianos saltados me encaravam assustadoramente. Era uma cobra? Como não ter medo? Mas não era uma cobra. Era um sapo. E acabamos tirando o sapo do buraco e o matamos, somente para então voltarmos ao mesmo lugar uma semana depois e topar agora com uma cobra de verdade, não muito grande, também é verdade, mas agora sim uma ameaça de vida ou morte, que surgira no local onde deixamos o sapo morto, e que ali estava exatamente para se alimentar dos restos mortais de nossa vítima indefesa. Não é que havia uma cadeia alimentar em curso diante de nossos olhos?
Havia histórias de cobras grandes também, mas em épocas mais afastadas, antes do surgimento da agricultura industrial nas terras em torno dos rios. Canaviais, laranjais e outras culturas eram responsáveis pela diminuição da diversidade de vida ribeirinha e as cobras realmente grandes já não eram vistas a bastante tempo na região. 
Meu pai contava que meu avô, que viveu longos anos no vilarejo, chegou a se deparar com uma cobra bastante grande na região da pequena e única ponte que passa sobre o ribeirão maior do local. Era uma cobra grossa e madura, e estava enrolada na estrada de terra que segue em direção ao morro do outro lado do ribeirão. A cobra, ao perceber o perigo de um humano se aproximando, se esticou toda e iniciou um ataque daqueles em que uma cobra corre sobre seu rabo enquanto mantém pelo menos metade da parte frontal do corpo esticada, como fazem as famosas najas indianas tão comuns em filmes e vídeos na internet. Não foi uma experiência agradável, supomos, porque o que se pode fazer diante de um animal dessa natureza a não ser correr dele? 
Então, havia as cobras grandes de nossos avós, e havia as cobrinhas menores de nossa época, que se limitavam a comer sapos já mortos por humanos. E essa situação parecia um fato dado até o dia em que um senhor, que chamarei aqui de M., foi picado por uma cobra grande de verdade.
O senhor M. tinha por volta de seus 65 anos de idade na época em que isso ocorreu. Ele era visto regularmente no vilarejo, embora não morasse na área urbana. Ele vinha todos os finais de semana na missa da igrejinha local, e tinha filhas adultas e netos que moravam na área urbana, mas ele e sua esposa moravam em uma casa de seu sítio alguns quilômetros ribeirão acima. O sítio fazia divisa com o ribeirão de um lado e com a rodovia principal da região no lado oposto. E o senhor M., já morador de longa data da região, costumava ir pescar na beira do ribeirão vez ou outra, como faziam muitos moradores locais, para pescar alguns lambaris para serem fritos para o jantar. 
O local era conhecido. Afinal, era em seu próprio terreno. Era um lugar limpo, uma beira de rio gramada e bem cuidada, próximo à casa principal do senhor M.. Não era uma região de mata fechada, nem uma região de brejo ou barro. 
O senhor M. pescou alguns peixes pequenos e colocou em um local ao alcance das mãos atrás de suas costas. Ele estava sentado na beira do rio, sobre um gramado baixo, e os peixinhos pescados não poderiam ficar muito perto do barranco, senão eles poderiam saltitar, ainda meio vivos, e cair de volta nas águas do ribeirão. E um dos peixinhos foi fatiado para servir de isca para os próximos peixes. Essa era uma forma comum de pescaria, exceto que, concentrado no rio, ao estender a mão direita para a área das costas onde estava ou colocando um peixinho recém pescado, ou pegando um pedaço de isca para colocar no anzol, ele não se deu ao trabalho de olhar para trás.
Atraída provavelmente pelo cheio ou calor dos peixinhos, uma cobra grande, uma urutu cruzeiro, estava onde sua mão direita se dirigiu.
Não sei se ele chegou a tocar na cobra, ou se ela simplesmente estava apenas muito próxima e se sentiu ameaçada. Ela desferiu um bote na mão do senhor M. e o que se seguiu depois é algo doloroso de se descrever.
O senhor M. sobreviveu ao ataque e meses depois, talvez tentando superar o trauma, ou talvez tentando evitar novos riscos, acabou vindo morar na área urbana do vilarejo.
Eu o via agora com mais frequência. Ele morava quase em frente à quadra de cimento onde jogávamos futebol. Às vezes ele aparecia para ver a molecada jogar.
Nunca conversei com ele. Nunca ouvi ele falando nada sobre o assunto, mas não havia como não pensar no poder da natureza a cada vez que o via.
Ele perdera parte do braço direito.
Com apenas metade do antebraço, era de se supor que o estrago feito pelo veneno tenha sido quase fatal. Mas, além da perda permanente, ele sobrevivera após um longo suplício no qual sofreu em todo o corpo os efeitos devastadores do veneno. Para termos uma ideia, as pessoas muito sutilmente diziam que ele chegara a sangrar pelos poros, pelos cabelos, pelos olhos, em um processo de quase decomposição em vida.
E a urutu cruzeiro certamente morava na beira do ribeirão, nosso querido e seguro ribeirão, com suas cobrinhas inocentes e inofensivas.
Mas seriam mesmo inofensivas, mesmo as pequeninas?
Não sei, mas não quis mais correr o risco. Nessa época, em que o senhor M. veio a morar mais próximo de nós, eu já tinha uns doze anos. E fui perdendo pouco a pouco o gosto pelas águas, pelos rios, ribeirões e córregos. 
Eu sempre gostei de guerras e sempre brincávamos nas matas, mas o medo de pisar em uma cobra falou mais alto.
Lia e estudava sobre as técnicas de sobrevivência militares, e, sim, os soldados também enfrentavam as cobras. Claro, eles eram treinados para se alimentar das cobras, a beber o sangue delas, a tomar antídotos em caso de picadas, mas nada era mais tão simples depois de um bote de urutu cruzeiro.
E não eram somente as cobras e os sapos as únicas ameaças. Depois vieram as aranhas, escorpiões, larvas coloridas, insetos com garras venenosas, os peixes e águas marinhas, as arraias e seus ferrões, a triste morte de Esteve Irvin e a sensação de que nós, humanos, somos frágeis amontoados de células do ponto de vista biológico, e que basta uma milionésima grama de qualquer veneno animal ou vegetal e nós já estamos nos decompondo em sangue e líquidos, como geleias indefesas diante das lâminas de um liquidificador.
E assim eu aprendi o cuidado e o respeito diante das forças biológicas da natureza invencível.
É claro que li e estudei sobre Darwin e as leis da sobrevivência dos mais aptos e versáteis, e sendo  um razoável conhecedor deste mecanismo, não vejo porque não respeitá-lo, adotando uma postura mais cuidadosa diante de seres vivos que existem a milhões de anos e que só existem porque sabem sobreviver, sabem se defender, e se defenderão sempre que forem ameaçados.
Não é preciso ir longe para vermos em nossas próprias casas exemplos deste confronto entre homens e as demais forças vivas da natureza.
Sei que você, leitor, também conhece alguma história tão ou mais interessante que as duas pequenas que acabei de descrever.
Assim, convido-o a tomar coragem e compartilhá-las conosco aqui mesmo neste blog. Use os comentários. Fique à vontade.
Ficaremos felizes em lê-las.

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