Caso 38 - Suindara

Não são somente casas que podem ser palco de fenômenos assustadores. As supostas casas fantasmas não se limitam a casas, afinal, mas a prédios em geral, ou mesmo outros espaços, como cemitérios, campos, rodovias, fábricas abandonadas ou não, escolas, pontos de ônibus, igrejas, dentre outros locais menos comuns.

A presente história ocorreu em uma escola, a pequena escola onde estudei durante oito anos, na qual cursei todo o meu primeiro grau. Evidentemente, não citarei a cidade por questão de privacidade.

Era uma cidade pequenina, um vilarejo, e os acontecimentos que narro se deram no começo da década de 1980. Aquela era uma época ainda mista, nem muito moderna, nem muito atrasada. Mas definitivamente nós, as crianças e pré-adolescentes da época, ainda éramos muito crédulos e medrosos para os padrões modernos.

Havia uma razão para isso, obviamente. Era uma época sem muita informação, sem amplos sistemas de comunicação, e em um vilarejo pouco propenso a novidades, as histórias antigas de assombração e fantasmas se arrastavam ao longo do tempo e chegavam até nosso conhecimento sem muita dificuldade. Se por um lado éramos de uma geração com mais educação, por outro ainda éramos muito jovens e isolados para sermos capazes de tirarmos nossas próprias conclusões acerca desses temas assustadores.

Assim, sim, nós tínhamos medo da lenda da noiva fantasma, a talvez mais famosa lenda urbana de todo o Século XX.

Eu estudava à noite quando dos acontecimentos que narro, mas as escolas sempre pareceriam lugares suspeitos.

Havia uma outra escola na vila. Na época ela já não era mais usada. Fora a primeira escolinha do lugar. Fora construída na década de 1910 e desativada na década de 1960, com a construção da escola maior a qual eu frequentava. Mas a escolinha desativada tinha a suas memórias. Meu pai estudara nela na década de 1950. Ele também trabalhara na construção da escola nova. Na época em que os eventos que descreverei ocorreram, a escola nova já não era tão nova. Tinha já uns 25 anos de uso.

A escolinha velha era um prédio pequeno e abandonado, com muros caídos, portas arrombadas, assoalhos de madeira apodrecida e reboco caído. Em uma cozinha ao fundo, um bêbado velho conhecido da vila costumava dormir nas noites de embriaguez. Ele tinha um colchão velho e fétido coberto de roupas e cobertores imundos nos quais se enrolava nas noites frias, mas de qualquer forma, embora o lugar fosse assustador, nunca ouvi falar de fantasmas por lá.

Mas a lenda da loira fantasma estava bastante firme. Enquanto os anos passavam, esse tema era pouco falado nas salas que eu frequentava porque eram todas de turmas das manhãs e das tardes. Havia duas turmas mais velhas que frequentavam aulas às noites, mas por serem de alunos mais velhos, estes não se davam ao trabalho de dar atenção aos alunos mais novos, se é que viessem a ter contato com algum deles. O pessoal mais velho mantinha seus assuntos para si. Crianças não tinham vez nos seus assuntos, inclusive no que se pensava a respeito da noiva fantasma, se existia ou não, se se tinha medo ou não de vê-la, ou se já fora vista. Era um assunto ao qual eu nunca tivera acesso antes.

Mas os anos se passaram e eu comecei a frequentar a sétima série, à noite.

Tudo correu bem.

Já no ano seguinte, na oitava série, também à noite, as coisas estranhas começaram a ocorrer.

Os alunos não eram muitos. Na minha sala éramos oito ao todo. Na outra sala, a da sétima série, deveriam ser uns quinze ou vinte alunos. Ao todo não éramos mais do que trinta alunos. Muitos deles vinham da zona rural. Assim, não era a todo momento que alguém se propunha a ir aos banheiros.

Uma noite, porém, um aluno de minha sala, um primo meu, um menino esperto que já morara na roça e conhecia bem os bichos mais comuns do mato, foi ao banheiro no meio de uma aula antes do intervalo, do recreio, como chamávamos o intervalo entre um turno e outro de estudos, quando então comíamos a merenda e batíamos papo. Ele foi, mas voltou muito branco e assustado. 

Um bicho, disse ele, um bicho estranho e feio estava correndo entre as plantas dos canteiros que separavam as salas dos banheiros.

Foi um alvoroço. Era uma noite escura e silenciosa de um dia qualquer.

Alunos mais corajosos saíram e foram atrás do bicho desconhecido. Eu não fui um deles. A mim me pareceu que algum lobisomem rondava por ali, então achei melhor ficar quieto dentro da sala.

Houve uma gritaria e alguma correria e por fim mataram o bicho.

Era um gambá, ou saruê. Feio, fedorento, alguém o matara a pauladas. Eu o achei feio e cheio de dentes ameaçadores, embora não tão grande e perigoso quanto um lobo ou lobisomem. Nunca tinha visto um gambá antes. Achei que fizeram bem ao tê-lo matado. Aquilo não era um bicho comum como um gato ou um cão qualquer. Era uma espécie d lobisomem em miniatura.

Passou-se os dias e percebi que a molecada estava indo menos aos banheiros. Aquilo tinha nos assustado. Houve então alguma conversa sobre a lenda da noiva do banheiro e eu confesso que fiquei com medo de ir ao banheiro sozinho antes ou depois dos intervalos. Só ia nos intervalos, quando então todos iam quase que simultaneamente. Parecíamos meio que como carneiros assustados.

Às vezes ouvíamos gritos estranhos vindos do lado do banheiro masculino. Sobre eles havia um telhado com beirais de madeira que aparentemente já estavam bem velhos e podres. As ripas estavam soltas, a tinta descascando, e havia algo estranho morando ali.

Era certo que poderiam ser morcegos, mas como eram os morcegos? Eu nunca vira um deles de perto. Eles eram vistos voando, e, segundo a lenda local, eram na verdade ratos velhos que perdiam os rabos e ganhavam asas de pele sem penas. Às vezes eles eram vistos na pequena igreja ao lado da escola. Às vezes alguém gritava durante ou depois de uma missa aos sábados ou domingos à noite, e então apontava para algo em algum local no alto do madeirame da igrejinha velha, mas eu não sabia bem para onde olhar, se para o dedo de quem apontava, se para o rumo apontado, entremeio a ripas e escadas, ou se para mais ao alto, no meio de cordas e sinos. De qualquer forma, nunca vira de fato um morcego parado, nem no solo, nem na igreja e nem mesmo na televisão. Se houvesse morcegos na escola, tudo bem, porque se eles podiam morar na igreja, por que não na escola, um lugar tão menos nobre e sério? Mas eu sequer fazia ideia de que os morcegos dormiam de cabeça para baixo. As pessoas mais velhas que viam e apontavam os morcegos sabiam e viam eles dependurados, mas com eu não conseguia vê-los, não era sequer capaz de supor como aqueles bichos voadores noturnos poderiam se parecer quando dependurados.

E então, numa noite, no banheiro, outro aluno, um camarada mais velho, um daqueles caras sérios que moram nas roças e parecem não ter medo de nada, foi ao banheiro e voltou branco.

É a loira, pensei comigo mesmo imediatamente naquele momento. 

Mas não era.

Era outro bicho.

Desta vez, era uma ave grande e branca como uma grande coruja, mas com uma face plana e arredondada como uma concha de uma antena parabólica, um radar. As pessoas foram até o banheiro, adultos foram chamados e por fim um senhor mais velho, um zelador seguro e maduro, foi até o canto onde a ave estava e a pegou com as mãos por dentre as asas e a tirou do banheiro para fora. E então o diretor da escola, nosso querido diretor, saiu de sua sala despertado pelo alvoroço e se deparou com o homem com a ave na mão.

O diretor sorriu e ao tomar conhecimento do susto, disse: é uma suindara.

Uma suindara é uma magnífica e bela espécie de pássaro grande parente das corujas. Tem coloração cinza clara e hábitos noturnos. Esta, em particular, nos contou o diretor, tinha um enorme ninho no canto mais alto do telhado, no meio das tábuas soltas da lateral do prédio, bem acima do banheiro dos meninos. Ela deveria ter caído ou tentado sair por um buraco no forro do teto do banheiro e caíra em um local sem saída, porque embora os banheiros fossem iluminados o tempo todo e as janelas fossem longas e altas, elas estavam todas fechadas. A suindara ficara presa no canto logo abaixo de seu ninho e o aluno que a vira tivera alguma razão em se assustar.

Após ser solta, ela voou para o escuro da noite rumo às árvores próximas e não apresentou problemas maiores. Nas semanas seguintes, passamos a olhá-la como uma nova moradora da escola, uma moradora possivelmente com filhotes ou ovos prestes a eclodir, e seus gritos não eram mais assustadores e sinistros.

Logo o ano acabou e eu me formei. Não havia mais o que fazer naquela pequena escola. Mudamos de cidade. Jamais retornei àquele local, àquele edifício que foi meu segundo lar por longos oito anos.

E não cheguei a ver a loira, embora a temesse.

Morcegos, gambás, corujas, suindaras, loiras decapitadas, o que nos aguarda nas escolas da vida, que não nos permite ter infâncias tranquilas e sem medo?

Depois descobri que quase toda escola tem seus mitos e lendas próprias. Evidentemente que descobri novos mitos em novas escolas que vim a frequentar nos anos subsequentes, mas então já estamos indo para novas histórias, que prefiro deixar para outras postagens. 

Se você conhece alguma lenda escolar que lhe tenha atormentado o coração e o feito aguentar calado pelo intervalo de uma aula para não ir ao banheiro sozinho, conte-nos. É certo que não sou o único a ter passado esse medo lendário.

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